O direito de recesso no direito brasileiro e na legislaçáo comparada

AutorNewton de Lucca
Páginas7-33

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I - Consideraçóes introdutórias

Discorrer sobre o direito de recesso, ainda que de forma meramente panorámica, nos limites de urna única palestra, constituí um daqueles desafios que só podem empolgar os mais corajosos. Espíritos nao afeitos á audacia ou a astucia, incapazes de empreendimentos difíceis ou que estejam além de suas próprias forgas - como há de ser lastimavelmente o meu - nao sao os mais indicados para tal tarefa...

Reconhego que, no presente caso, ten-tei reunir toda a audacia que ainda me res-tava para tentar levar a cabo essa empresa, sem perder de vista, por certo, aquela sabia advertencia, atribuida a Lord Chester-field, de que a astucia parece ser o sombrío santuario da incapacidade1...

Com efeito, há que se ter, sobretudo, para tema táo vasto a ser enfrentado em al-gumas poucas horas, um sentido espantoso de resposta as interrogaqóes de natureza mais complexa, além de um poder, deveras especial e quase sempre raro em nosso meio, de captagáo imediata do ámago das coisas.

Tantos sao os aspectos polémicos des-se direito e tantas sao as materias que po-deriam ou deveriam ser tratadas por quem se proponha a dissertar sobre elas, que o talento para sintetizá-las há de estar, efeti-vamente, muito além do que o simples es-forgo deste expositor pode oferecer.

De toda sorte, a maior de todas as co-ragens, como já se disse algures, é a de as-sumir responsabilidades. E a esta última, por razóes de variada ordem, eu nao deseja-va me esgueirar a sorrelfa, posto ser grande e antigo o meu carinho pela Pontificia Uni-versidade Católica de Sao Paulo que organiza este curso.

Principio por dizer que o art. 109 da Lei 6.404, de 15.12.76, disciplinadora das

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sociedades por agóes no Brasil, estabele-ceu os chamados direitos essenciais tam-bém conhecidos por direitos intangíveis, fundamentáis ou interrogáveis2 do acionista.

Dispóe ele que:

"Nem o estatuto social nem a assem-bléia-geral poderáo privar o acionista dos direitos de:

"I - participar dos lucros sociais;

"II - participar do acervo da compa-nhia, em caso de liquidagáo;

"III - fiscalizar, na forma prevista nesta Lei, a gestáo dos negocios sociais; "IV - preferencia para subscrigao de agóes, partes beneficiarías conversíveis em agóes, debéntures conversíveis em agóes e bónus de subscrigáo, observado o disposto nos arts. 171 e 172;

"V - retirar-se da sociedade nos casos previstos nesta Lei.

"§ 1°. As agoes de cada classe confe-riráo iguais direitos aos seus titulares.

"§ 2°. Os meios, processos ou agóes que a lei confere ao acionista para assegu-rar os seus direitos nao podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembléia-geral."

Verifica-se, pois, numa primeira apro-ximagáo com o tema, que o direito de re-cesso se insere no ámbito desses direitos essenciais ou intangíveis, consoante a ex-pressa disposigao do inc. V do art. 109 re-trotranscrito.3

Assim como, no plano constitucional, foram criados os direitos e garantías individuáis4 como forma de coartar os abusos de poder dos governantes, poder-se-ia dizer, análogamente, que os direitos essenciais do acionista, em certo sentido, foram declarados para conter os atos de abuso de poder por parte dos controladores, consoante vislumbrado por Luiz Gastáo Paes de Barros Leáes:5 "Assim, a semelhanga dos direitos individuáis dos cidadáos, cuja inviolabili-dade é assegurada pela Constituigáo Federal (art. 153),6 a Lei de Sociedades Anónimas firma o elenco dos direitos essenciais dos ación istas, assegurando-lhe a intangi-bilidade, de maneira expressa e taxativa. Esses direitos, somados a poderes, ónus e obrigagóes atinentes aos acionistas, com-póem o chamado status socU, que se define como a posigáo do socio dentro da co-letividade social, e pressuposto comum e constante de tais direitos e deveres".

Na mesma linha, doutrina José Ru-bens Costa,7 in verbis: "(...) Se é certo que os direitos individuáis do cídadáo decor-rem do Direito Natural, nao menos certo é que a nogáo de Direito Natural é muito imprecisa e necessita, por conseguinte, de urna regulamentagáo de Direito Positivo, para que se determine quais sao estes direitos naturais inerentes á condigáo humana. Da mesma forma, portanto, o Direito Positivo cataloga os direitos essenciais de cada acionista dentro da sociedade, como inerentes a sua condigáo, ao seu status de socio".

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As expressóes numa primeira aproxi-macáo com o tema e em certo sentido, li-nhas atrás utilizadas, denotam a nossa pre-ocupagáo de, independentemente de maio-res aprofundamentos doutrinários, prefixa-rem-se conceitos rígidos e peremptórios, de rango marcadamente positivista, sem margem as construgoes exegéticas de qual-quer especie...

Tal procedimento, na verdade, nos parece extremamente nefasto pelo seu cará-ter obliterado e reducionista, posto que o direito de recesso, como tantos outros institutos jurídicos, nao pode ser adequada-mente entendido se analisado exclusivamente sob o prisma das disposigóes legáis que o consagram.

Daí a importancia decisiva de nos determos, no item subseqüente, na análise nao apenas do conceito do direito do recesso, mas também dafungáo que o mesmo é chamado a desempenhar, a fim de que nao se tirem ilagóes indevidas, a partir de concei-tuagóes previas, que desviam o intérprete da exegese sistémica do instituto em estudo.

Deveras, o direito de recesso ou de dissidéncia do acionista - pela nossa lei epigrafado como direito de retirada - é materia que vem dando margem as mais calorosas discussóes. Nem poderia ser de outra forma. Situa-se ela, talvez, no epicentro dos conflitos entre acionistas controla-dores, de um lado, e acionistas minoritarios, de outro.

Já se disse, com propriedade, que o instituto do recesso reflete a tensáo permanente entre os interesses individuáis dos socios e as necessidades de desenvolví mentó da empresa; nao se pode condenar o acionista a permanecer em urna empresa que nao atende mais aos seus interesses. A le-gislagáo visa proteger esse acionista e permitir que ele se desligue da "nova" compa-nhia, pela qual ele nao se senté mais atraído.8

A par das discussóes essencialmente jurídico-doutrinárias sobre a natureza des-se direito - em principio a de um negocio jurídico que produz a extingáo da relagao jurídica entre o acionista e a companhia, caracterizando-se por ser manifestando unilateral de vontade ou reclamagáo na voz sempre autorizada de Pontes de Miranda9 - e inserindo-se ele, a nosso ver impropriamente, no quadro dos direitos individuáis dos acionistas, o caráter eminentemente ideológico desse direito torna-se indisfar-gável, bastando, para tanto, que se recordé as vicissitudes por que passaram aqueles direitos individuáis dos acionistas (Sonder-recht), consagrados no BGB alemáo do final da centuria passada, mas duramente castigados durante o período nazista em que foi editada a Aktiengesetz de 1937.

Assim, é certo que o direito de reces-so como acontece, sobretudo, com o direito de voto acompanha, de certo modo, a evolugao democrática das sociedades anónimas e sua posterior involucro atual para um caráter predominantemente aristocrático, como nó-lo demonstra a doutrina mais autorizada a respeito da materia.

Modesto Carvalhosa,10 p. ex., em epígrafe a que denominou "Involugáo política refletida na Lei n. 6.404, de 1976", assina-la com a costumeira propriedade: "Temos, assim, que as Leis 6.404, de 1976, e 9.457, de 1997, nao somente deixaram de evoluir com referencia á lei de 1940, como invo-luíram profundamente no que respeita ao principal direito do acionista, qual seja, o de participar das deliberagóes sociais em assembléia-geral.

"A Lei 6.404, de 1976, nao pode ser alinhada na concepgáo democrática da so-ciedade anónima, fundada no contrato social, em que o voto é o principal instrumento de participagáo e de representagáo social."

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Já Rachel Sztajn,11 após assinalar as diferencas existentes em materia de direito de recesso no plano do Direito Comparado, mesmo no que se refere as "legislagóes pertencentes a urna mesma familia", asse-vera que "a suspeita de que o direito de recesso nao constituí instituto voltado para a tutela de minoritarios - torna-se mais e mais intensa e impóe a busca de outra hi-pótese".

Apesar de aceitar a idéia de que as re-lagóes entre a maioria e a minoría acioná-rias sao, efetivamente, a "pedra de toque de qualquer sistema de sociedades", concluí a referida Professora que: "Ora, aceita essa afirmagáo, se o recesso for direito voltado para a tutela de minorías, deveria estar presente em todas as legislagóes, independen-temente do sistema jurídico, pois a questáo maiona/minoria nao é própria apenas do Direito brasileiro".

Aurelio Menéndez Menéndez,12 de-pois de assinalar que a concepgao democrática da sociedade anónima, enquanto forma de grande empresa, entrou em crise, com a tendencia de concentragáo e de uni-ficagáo do poder acelerando-se cada vez mais, dado que a necessidade de se asse-gurar a maior eficacia possível á gestáo da empresa social fez com que o poder se des-locasse para os chamados órgáos da admi-nistragáo, tece as seguintes consideragóes: "Si es ésta la realidad, es natural que nos preguntemos sobre el sentido que desde esta perspectiva puede tener la diferenciación entre accionistas de control y accionistas inversores de fondos, o si se quiere, para seguir recordando las ideas expuestas, sobre el sentido que tienen las acciones sin voto. Parece que por este lado la respuesta no es dudosa: las acciones sin voto significarían que en una buena parte lo que era la piedra de toque de la organización del po-der queda suprimida...

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