O Direito de Resistência em Matéria Ambiental

AutorMarcio Henrique Pereira Ponzilacqua
CargoProfessor doutor de Sociologia Geral e do Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP) e de Instituições de Direito na Faculdade de Economia e Administração (FEARP-USP)
Páginas5-11

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1. O direito e o direito de resistência

O que1 vem a ser o Direito? Muitas teorias se propõem a responder essa intrincada questão. Não pretendemos aqui defini-lo, em absoluto, porquanto bem saibamos da polissemia do termo. Basta reportar que concebemos o direito para além das noções tradicionais. Para efeito desta abordagem, havemos de entendê-lo como um complexo e inextricável conjunto de interesses, normas, embates e decisões, o que supõe uma interação indissociável entre sociedade e estruturas legislativas/ judiciárias.

Nosso escopo é outro e, ao que parece, bastante evidente desde a escolha do título: é elucidar a emergência de direito ou direitos de resistência no âmbito dos ordenamentos jurídicos como condição de sua própria dinamicidade e como elemento de transformação-emancipação, especialmente em matéria ambiental.

Para tanto, é preciso convir que o direito condiciona e é condicionado2 pelos grupos sociais e/ou instituições, mediante funções distintas e, não raras vezes, paradoxais, tais como a de ordenar, controlar, monitorar, educar, socializar, legitimar, transformar relações nos grupos sociais e, notadamente, estabilizar expectativas3. Mas, de modo algum, ante os fenômenos sociais, o direito é neutro, estabilizador e indutor de harmonia. No processo de positivação, o direito possui um caráter dinâmico e conflitivo, quer na sua elaboração, quer na sua aplicação e responde aos interesses dos grupos4 que lutam entre si para dizer o direito no campo específico que é o jurídico5.

Por se tratar do "instrumento institucionalizado de maior importância para o controle social"6, o direito necessita ser visto e considerado com acuidade e atenção redobrada. O sistema jurídico reflete os objetivos, crenças e valores de determinados conjuntos sociais, mas traduz e ao mesmo tempo reduz a complexidade ética e teleológica histórica e cultural das sociedades nas quais se insere com suas expectativas e orientações. Por ser uma espécie de redução da complexidade social, naquilo que as sociedades humanas conseguem captar e lidar das circunstâncias e transformações sociais, em geral cristaliza-se na legitimação das expectativas e orientações dos grupos que têm acesso e assumem o capital jurídico7.

No âmbito dos fenômenos sociais, no entanto, constata-se a existência de muitas ordens e desordens e não de uma única ordem imperante (e tampouco de um conceito de desordem igualmente uno)8. Evidentemente que uma análise embasada num olhar ordenado e unívoco, que é, ao que nos parece, ainda muito difundida nos meios jurídicos, simplificaria nossa avaliação fenomênica e a tornaria muito mais palatável. Todavia, não corresponderia às coisas como elas são, porquanto reduziria sensivelmente a análise a pontos estanques, fragmentados, deslocados e se perderia a noção de totalidade.

O direito não é um corpo monolítico cuja conformatação é dada unidirecionalmente pela norma posta, e, deste modo, destituído de vulnerabilidades às intempéries sociais. Ainda que vise à ordem, muitas vezes nele o que predomina é a desordem, e tantas vezes a promove no seio social, mesmo que pretenda

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o contrário. Subsiste sob o véu do ordenamento uma turbulência social a descoberto das normas e da pretensa validade universal da norma.

Evidentemente que as normas ou o conjunto delas tende à organização e à estabilidade. Todavia, por conta da sua intrínseca relação com o corpo social, com os macro e micro-organismos do tecido da sociedade dos quais se origina e para os quais se destina, a sua tendência se inverte e acaba pendendo para a instabilidade muito mais que para a estabilidade - e isto é particularmente verdadeiro num mundo em constante mutação como o nosso. E mais ainda numa sociedade de contrastes tão acentuados como a brasileira, em diversos níveis - de composição da população, de estratificação social, de etnias e miscigenações multifacetadas, de pluralismo cultural, de organizações políticas variadas e inconstantes...

Há sempre organização e ordens que resistem à desordem, ou nela são geradas: é a tensão/resistência entre9. Em contrapartida, ante a permanência da lei ou da ordem, subsiste a desordem social. Muitas vezes, quando as normas significam uma transformação social, uma mudança de padrões de condutas ou paradigmas, pode resultar no seio social um fenômeno de resistência. O inverso é igualmente verdadeiro: o ordenamento pode servir de resistências às mudanças sociais. Em geral, a mudança das leis não acompanha o ritmo da dinâmica social.

Não só o direito estatal atua como elemento sócio-regulador e subjugador. As instâncias deliberativas e normativas em todos os níveis sociais - seja numa perspectiva macrossistêmica ou microssistêmica -também tendem a usualmente tolerar, ignorar ou aniquilar os conflitos entre os diversos grupos identitários diferentes, sem reconhecê-los ou abordá-los satisfatoriamente. A sociedade civil, que se apresenta como base do direito consuetudinário, também é palco dessas tensões10. Convém recordar que o conflito é a própria razão de ser do sistema judiciário nos moldes ocidentais, constituído para solução de lides.

O mesmo se pode dizer acerca das instituições sociais. Embora haja múltiplas acepções sociológicas para essa locução terminológica, há uma convergência semântica entre elas. René Lourau apresenta três possibilidades semânticas da instituição para as quais convergem os seus vários sentidos nas teorias sociológicas, a saber: 1. norma universal ou considerada como tal, 2. o ato instituinte, 3. formas visíveis dotadas de organização jurídica e/ou material. Embora detenham conteúdos aparentemente distintos, Lourau reconhece que há um elemento comum entre as diversas concepções de instituições. Em todos os sentidos, podem ser decompostas em três momentos distintos: a) universalidade, b) particularidade e c) singularidade. No primeiro momento, o da 'unidade positiva do conceito', implica a abstração genérica. A particularidade confere o momento da encarnação da universalidade. Comparece como as condições particulares negadoras da universalidade. A singularidade, por sua vez, momento fundamental e descuidado pela maioria das teorias sociológicas, equivale ao 'momento da unidade negativa' - as mediações concretas que permeiam as instituições desde a universalização em direção à sua encarnação. É "a ação da negatividade sobre a unidade positiva da norma universal"11.

A singularidade é sobremodo interessante para efeito da compreensão do que estamos expondo. Há elementos implícitos e subjacentes a se contraporem e a minarem a pretensa universalidade da norma e das instituições. Mas como as sombras são consequência da exposição dos corpos à luz e não podem ser eliminadas, o que se encontra silenciado ou subjugado é elemento necessário de conjugação do todo, ao lado do que é visível, privilegiado, iluminado. Isto concerne às "funções negadas, presentes-ausentes"12, mas fundamentais pois sua relação com as funções privilegiadas é intrínseca e indissociável nas constituições sociais, particularmente na relação sujeito-instituições.

O aparelho estatal ou as instituições agem, ante os indivíduos ou modos de resistência ou sublevação, como "computador ordenador, decisional, que subjuga, a sociedade e organiza a máquina ordenadora"13. E, ao mesmo tempo em que subjuga, induz à reação, que pode resultar na emancipação: os subjugadores - quer se apresentem na forma de Estado, instituição ou indivíduo autoritário - não podem sufocar plenamente a anarquia infraestrutural. Ela permanece, resiste. A emancipação pode emergir como reação à imposição, ao jugo, à opressão e aparece na proporção da violência empregada pelo subjugador.

O direito é instrumento privilegiado de sujeição/ emancipação. Sujeição é mais que subjugação, pois incorpora a ideia de alienação, já presente em Hegel, retomada em Marx e agora ampliada em Morin14. Entre todos os seres vivos subsistem relações de subjugação. Todavia, a sujeição - subjugação mais alienação - é qualidade dos seres humanos. Elimina a autonomia. Há controle, transformação, manipulação. Neste caso, as políticas regulatórias do Estado contestam os sistemas emancipatórios cuja base se encontra na igualdade, na liberdade, nas formas alternativas de efetivação da justiça e na cidadania. Por outro lado, o direito torna-se instrumento emancipatório à medida que fomenta um direito novo, de índole metaindividual, coletivista, que subverte as relações político-econômico sociais. Por outro lado, quando mantém o establishment, quando favorece a acumulação e concentração do capital social, político, cultural ou econômico15 em favor de uma elite social, numa perspectiva jurídica de tônica individualista, age como instrumento de sujeição16.

Instituições ou indivíduos autoritários também buscam formas crescentes de concentração do poder ou de obstar o acesso dos elementos que a eles se opõem. Nisso está a origem do poder totalitário. Todavia, é inexorável o processo de contestação de um poder concentrado, autoritário e totalizante. O poder autoritário e centralizador traz em si, mediante o processo dialético, o embrião da contestação. Não é só a universalidade e a particularidade que ditam a tônica institucional. Subsiste também a singularidade - a oposição implícita, subjacente, rebelde e resistente que sobrevive à sombra da universalidade institucional.

Novamente, encontramos aqui o desenrolar de uma ideia de composição de opostos. A emancipação subsiste à sujeição/subjugação e lhe resiste. Mesmo nos aparelhos político-estatais-ideológicos mais rígidos, subjaz a "anarquia infraestrutural" - interações espontâneas e espontaneamente organizadas -subterrânea, clandestina, que escapa ao aparelho estatal

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