Direito de retenção no contrato de empreitada

AutorRenato Ventura Ribeiro
Páginas57-68

Page 57

I - Introdução

A crise económica em nosso país tem provocado considerável inadimplência, quer por particulares, quer por entes públicos. Como os últimos são grandes consumidores de obras de construção civil e suas tradicionais dificuldades financeiras foram bastante agravadas pela crise fiscal do Estado, é cada vez mais comum o atraso e até o não pagamento de serviços realizados por construtoras e empreiteiras.

Diante de tal quadro, o tema do direito de retenção no contrato de empreitada reveste-se de grande atualidade. Embora seja assunto bastante antigo, alvo de discussão em tempos idos,1 e haja entendimen-to favorável pela quase totalidade da doutrina e da jurisprudência, é pertinente uma análise hodierna da questão. Não só pelos atuais casos práticos, como pela ausência de estudos recentes e até pela diversidade de fundamentos para sua justificação. Além disto, permanecem alguns problemas, sobretudo pela deficiência na legislação brasileira, que não prevê disposição expressa a respeito, exigindo construção doutrinária ejurisprudencial.

Page 58

Pretende-se, pois, com o presente estudo, apresentar exame atualizado do tema, não só preenchendo a lacuna existente como também trazendo elementos modernos à discussão.

II - Fundamentos do direito de retenção

Inicialmente deve ser feita análise do próprio instituto do direito de retenção, para exame de sua aplicação na empreitada. Isto porque o direito de retenção é matéria difícil e, mesmo após séculos, ainda há muita controvérsia na doutrina e na jurisprudência, não há forma jurídica estável e nem uma teoria geral corrente.2 Além disto, como pendem diversos debates sobre a matéria, a fattispecie do direito de retenção ainda não se encontra totalmente delineada. E as soluções podem variar conforme o prisma pelo qual se enxerga o instituto.

1. Origem e primeiros princípios do direito de retenção

Ao que tudo indica, o direito de retenção é criação romana.3 A primeira menção é do final da República, em D. 14, 2, 2, pr. Surge do direito pretoriano, como exceptio doli generalis, em oposição à rei vindicado do dono da coisa. Baseava-se no princípio da equidade, para assegurar ao possuidor de coisa alheia uma garantia de pagamento pelos gastos com o bem. Assim, com fulcro no princípio exceptio doli generalis e na equidade, o pretor concedia a exceptio doli jure retentionis para suprir a falta de ação no processo formulário.

No direito romano o direito de retenção já aparece com os quatro requisitos aceitos até hoje (objeto de exame no item n. 8 abaixo):

  1. detenção ou posse legítima de coisa, móvel ou imóvel, retida;

  2. direito de crédito do retentor contra o dono da coisa;

  3. relação de conexão entre o crédito e a coisa;

  4. inexistência de convenção contrária ou disposição proibitiva.

Não se encontra, no direito romano, uma sistematização do direito de retenção. Isto em razão do génio prático e resistência a abstrações dos romanos.4 Por isto, quando muito, há aplicações do direito de retenção em casos isolados (como, por exemplo, em D. 19, 1, 13, 8).

2. Direito de retenção e "exceptio non adimpleti contractus"

Cumpre5 desde logo diferenciar o direito de retenção da exceptio non adimpleti contractus.

Apesar de terem origem comum (exceptio doli), serem bastante parecidos sob o aspecto prático e até poderem se confundir, o direito de retenção e a exceção de ina-dimplemento são bem distintos. As principais diferenças são:

Page 59

  1. a exceção de contrato não cumprido decorre de contrato sinalagmático, como meio de assegurar-lhe a reciprocidade, e o direito de retenção aplica-se também a situações não contratuais;

  2. o direito de retenção pode ter feição real, enquanto a exceção enquadra-se no campo do direito das obrigações, sendo pessoal;

  3. o direito de retenção tem por finalidade a prestação de garantia, não tendo o retentor a intenção de ter a coisa retida definitivamente em seu poder. Já a exceção de inadimplemento está centrada no princípio da reciprocidade, sendo resultante da própria convenção, como direito de resolução contratual, podendo em tal hipótese o retentor vir a ficar com o bem;

  4. quanto ao objeto, o direito de retenção abrange coisas suscetíveis de detenção material,6 ao passo que a exceção de contrato não cumprido é aplicável ao objeto de contratos, sejam coisas corpóreas ou prestação de serviços;

  5. no direito de retenção, o retentor tem a obrigação de restituir a coisa alheia ao dono, enquanto a exceção de inadimplemento aplica-se a quaisquer outras obrigações;

  6. o direito de retenção é direito autónomo, extraprocessual e a exceção é meio jurídico de defesa.

Embora ambos os institutos possam ser aplicados em alguns casos, deve-se diferenciar duas situações: simultaneidade de execução de obrigações recíprocas e cone-xidade entre o crédito e a coisa.7 Nos casos em que já houve o cumprimento do contrato pelo retentor (como, por exemplo, no caso do hoteleiro ou do transportador que já efetuaram sua parte e aguardam o paga-mento), somente é cabível o direito de retenção e não a exceção de contrato não cumprido, tendo em vista o adimplemento do retentor ser irreversível. Em outros contratos, como o de empreitada no qual a coisa pertence ao empreiteiro, a exceção de contrato não cumprido produz o mesmo efeito do direito de retenção, podendo-se até utilizar o princípio da exceptio non adimpleti contractas. Mas se a empreitada for realizada em coisa alheia, cabe só direito de retenção.

3. Fundamento do direito de retenção

Diversas são as tentativas de fundamentação do direito de retenção.8

Uma das teses mais antigas, e por muitos defendida, justifica o direito de retenção com base no princípio da exceptio non adimpleti contractas. No entanto, pelo exposto no item anterior, embora em alguns casos ambos os institutos possam ser aplicados, são figuras bem distintas, não servindo a exceção para embasar o direito de retenção.

Outra teoria é a da vontade presumida das partes, pela qual o direito de retenção é uma suposta garantia derivada de acordo tácito entre as partes. Porém, nem sempre há vontade do devedor no estabelecimento do direito de retenção. Também não se aplica nos casos em que o bem está em posse do credor.

Outra tese baseia-se na relação de conexão entre o crédito e a coisa retida. A conexão é um dos requisitos, mas não se confunde o requisito com o fundamento.

Pela mesma razão deve-se repelir a teoria do enriquecimento ilícito, segundo a

Page 60

qual o direito de retenção justifica-se pela ideia de evitar o locupletamento do devedor. Não se pode confundir a razão do crédito com a da garantia concedida. Ademais, o valor pode ser exigido por outros meios, não se podendo falar em enriquecimento indevido.

Outros advogam a tese da igualdade entre as partes. Procura-se evitar que o devedor receba o bem, sem que o credor tenha satisfeito o seu crédito, pondo as partes em igualdade de posições. Caso contrário, o devedor seria beneficiado com o recebimento da coisa, e o credor não teria meio rápido de recebimento da prestação que lhe é devida.

A partir da ideia de igualdade das partes, procura-se abrigo no direito natural como fundamento do direito de retenção. A retenção como direito natural teria como base não só a igualdade das partes, como a defesa natural do retentor contra a pretensão injusta do dono da coisa de receber a coisa sem pagar o que é devido.

Fala-se ainda em aplicação da justiça privada. Porém, no direito de retenção pode não haver ação efetiva do retentor, pois o detentor fica passivo.

Há também a tese da equidade, inspirada na ideia de garantia, sendo um aperfeiçoamento da ideia dos romanos.

Para outros,9 há causas mistas, como a vontade presumida das partes, como derivação da exceptio non adimpleti contrac-tus nas relações contratuais e da equidade nos vínculos extracontratuais.

De todas, parece-nos mais aceitável a ideia de equidade, conferindo-se ao credor não só uma garantia como um meio célere e eficaz de recebimento de seu crédito.

4. Natureza jurídica do direito de retenção

Questiona-se até se a retenção é ou não um direito. Para alguns, é um simples meio de defesa ou então ato jurídico.10 Não seria direito por falta de ação protetora e o fato da retenção produzir efeitos jurídicos não implica ser ela direito, pois a posse também gera consequências jurídicas e é estado de fato. Todavia, a quase totalidade da doutrina tem a retenção como direito.11 Diverge apenas quanto à sua natureza.

Para alguns, trata-se de direito pessoal do retentor, pois não possui direito de preferência e de sequela, características dos direitos reais. Mas, como tal, só deve ser oponível ao proprietário da coisa retida e não a terceiros.

Por isto, outros defendem a retenção como direito real, pela relação direta e imediata entre o titular do crédito e a coisa. Sendo direito real, é oponível erga omnes e não interpartes. No Brasil, a lei de falências anterior considera a retenção direito real.12 Contra a ideia de retenção como direito real, invoca-se a falta de previsão legal...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT