Direito a saude, jurisdicao constitucional e estado de emergencia constitucional: uma perspectiva critica da pandemia/Right to health, judicial review and constitutional state of emergency: a critical perspective of the pandemic.

AutorBacha e Silva, Diogo

Introdução

A pandemia do COVID-19 tem trazido à tona importantes reflexões e debates acerca do correto exercício do poder político, da função econômica e do Estado e, sobretudo, do funcionamento das instituições, além do próprio âmago da disciplina científica. No limite, a produção do conhecimento sempre soube lidar com momentos de crises e rupturas decorrentes de abalos sistêmicos no próprio saber.

Não é que o coronavírus seja um novo cisne negro na humanidade, até mesmo pelo fato de que especialistas já alertavam para a ocorrência de uma pandemia de origem gripal. (1) A questão principal é que em momentos que tais, as práticas, conhecimentos e sabedorias de um determinado "mundo" dominante e hegemônico podem ser repensadas e refletidas em direção a um novo-velho "mundo".

Embora não possamos prever qual "mundo" nos aguardará após o fim da pandemia, a maneira como lidamos com as crises determinará em grande medida o futuro que pretendemos. Isto é, a própria forma com que enxergamos o problema no presente determinará as ações, práticas e conhecimentos vindouros. Seja por um viés otimista ou pessimista, o mundo não será o mesmo. E a reflexão em meio à própria dinâmica pandêmica é também um exercício histórico que possibilita pensar o passado-presente-futuro.

O âmbito jurídico-político não é diferente em relação aos aspectos filosóficos, sociológicos e econômicos. Aqui, portanto, pretendemos oferecer algumas reflexões iniciais sobre a relação entre pandemia e o exercício do poder jurídico-político em nosso sistema constitucional nos momentos de emergência. Mais do que buscar respostas, oferecemos um cabedal de questões que se entrelaçam e podem ser pensadas para um mundo jurídico-constitucional pós-pandemia.

Assim, portanto, nosso percurso intelectual se dará em fornecer as diretrizes das emergências constitucionais e qual o modelo seguido pelas instituições nacionais, assim como estabelecer uma crítica ao modo com que o modelo decisório da Constituição foi estabelecido e praticado pelos órgãos políticos. A decisão acerca de uma emergência constitucional é um lócus que pressupõe uma linha tênue entre democracia e autoritarismo, entre ampliação e restrição das liberdades políticas. Por mais que situações emergenciais dependam de uma resposta jurídica que subentende uma razão de Estado, a plena vigência do direito constitucional e, por conseguinte, de uma jurisdição constitucional democrática, podem ser remédios terapêuticos eficazes contra os motivos que a ensejaram. Por isso, a nossa análise entrelaçará os mecanismos políticos e jurídicos de controle do estado emergencial, assim como uma análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com especial destaque para a ADI 6363 na qual a jurisdição constitucional defenestrou o texto constitucional com argumentos pragmáticos.

Em segundo plano, buscaremos compreender como a emergência constitucional do direito à saúde suscitou um conflito federativo, cujas respostas para o seu enfrentamento dependem também da compreensão adequada do federalismo em nosso sistema constitucional, assim como da própria organização constitucional da federação. Chamado a solucionar as controvérsias federativas da COVID-19, o Supremo Tribunal Federal ficará responsável por consolidar um modelo de federação simétrica e centrífuga e, portanto, democrática ou, de outro modo, restabelecer uma tradição constitucional-autoritária de uma federação centrípeta e assimétrica.

Por último, o itinerário percorrido irá nos permitir ver quais as consequências no interior do sistema de saúde adotado por nossa Constituição e, ainda, como se agita um falso dilema entre saúde e liberdade, assim como entre saúde e economia, o que nos levará, inclusive, a abordar um enfoque interseccional do direito à saúde e sua devida relação com os demais direitos fundamentais em um suposto contraste e questões sociais, políticas, epistêmicas que rondam a atuação em defesa do sistema de saúde.

O método explorado no presente artigo é uma perspectiva crítico-reflexiva que congrega o pensamento jurídico-social de diversas matizes, movimentos e epistemologias críticas e de coloniais para se pensar o problema aqui ensaiado e, ainda, ofertar uma possível resposta que parte da premissa de uma complexidade, interdisciplinaridade e contextualidade dos problemas enfrentados pela pandemia.

Aqui, portanto, a narrativa histórico-jurídica permitirá desvelar o conteúdo dos problemas enquanto uma epistemologia da hermenêutica-crítica ensaiará as possíveis respostas.

  1. Estado de emergência e jurisdição constitucional na pandemia do COVID-19

    Há muito que os Estados nacionais não se encontravam em um dilema tal que acabasse por levantar questionamentos nas suas próprias estruturas econômicas, sociais, políticas e jurídicas. A pandemia causada por uma nova cepa do vírus corona, denominada COVID-19, e sua respectiva síndrome respiratória aguda grave (SARS-Cov-2), declaradas pela OMS no dia 11 de março de 2020, possibilita pensar nas suas relações e configurações jurídico-políticas e o exercício da liberdade.

    Aquele mundo que acreditávamos sólido e pujante se desfez em meio a um elemento natural microscópico. Ironicamente, ao contrário das películas hollywoodianas apocalípticas, os dilemas provocados pelo momento pandêmico não nos mostram um lado utópico da coragem e determinação da humanidade, mas desvelam ações de um lado sombriamente real que entrelaça desigualdade política, social, econômica aliada à forma como enxergamos e lidamos com o mundo que nos circunda. Em seu sentido mais amplo, a pandemia coloca em xeque a modernidade, considerando uma reação da natureza enquanto totalidade da vida em virtude de seus múltiplos ataques realizados durante mais de 5 (cinco) séculos "modernos" (2) - temos, de um lado, o legado de uma Modernidade que achou que poderia submeter coisas e pessoas à sua vontade (racional!) aliado paradoxalmente, de outro, a uma nova onda anticientificista que nega os efeitos colaterais da superexploração dos recursos naturais e luta contra os esforços e evidências da ciência para minimizar os danos.

    No âmbito jurídico, o enfrentamento da pandemia suscitou determinadas respostas dos Estados nacionais consistentes em medidas de emergência constitucionalmente previstas. (3) Neste ponto, é importante distinguir estado de emergência constitucional e estado de exceção. No primeiro, as respostas para as crises e dilemas são fornecidas pela própria ordem jurídica-constitucional e, portanto, o enfrentamento pressupõe a plena vigência da Constituição em toda sua plenitude. Embora a denominação, os pressupostos e a própria disciplina possam variar entre as constituições dos países ocidentais, a lógica continua a mesma: a possibilidade de uma disciplina jurídico-política para lidar com eventos que conduzem a uma instabilidade social, econômica, política e jurídica de tal forma a garantir a integridade do projeto constitucional.

    Acerca das premissas constitucionais do estado de emergência, Canotilho estabelece:

    [...] a) em primeiro lugar, a defesa do Estado e da segurança pública só é compatível com o Estado Constitucional se e na medida em que ela esteja prevista na Constituição e não remetida para o domínio extraconstitucional; (b) a suspensão da Constituição é uma contraditio in adjectu, porque ela significa na prática um regime sem Constituição (mesmo limitado a parte do território); (c) a defesa do Estado não exige a suspensão da Constituição, mas sim a de algumas garantias individuais; (d) a constitucionalização do regime de exceção não pressupõe uma normatização constitucional pormenorizada desse regime, podendo a Constituição remeter para a lei os casos de situação excepcional e as formas e medidas a adoptar em tais circunstâncias. Constitucionalização do estado de exceção e remissão para a lei de sua regulamentação são as pedras basilares da compreensão jurídico-constitucionais do direito de necessidade. O problema está em que a disciplina constitucional é, por vezes, demasiado aberta, permitindo uma complementação legislativa sensivelmente subversiva dos próprios princípios constitucionais. (4) Em virtude mesmo da própria necessidade de regramento constitucional ou legal dos estados de emergência é que os problemas das necessidades urgentes e perigos iminentes para o Estado precisam ser não só um problema político, mas estar no centro das reflexões de teoria da constituição e de filosofia do direito até mesmo pela inter-relação entre as normas jurídicas e necessidades sociais.

    As situações e acontecimentos inesperados são da própria pré-condição do estabelecimento de uma emergência constitucional. Disto decorre que não é possível uma normatização dessas hipóteses, devendo-se manter aberta a disciplina constitucional, como, por exemplo, nos conceitos de "grave e iminente instabilidade institucional" do Estado de Defesa (art. 136 da CF/88) ou "comoção grave de repercussão nacional" prevista para o Estado de Sítio (art. 137, inc. I da CF/88). Contudo, a impossibilidade de se antever as condições factuais para a deflagração do estado de emergência constitucional não implica que outros fatores não possam ser regulados.

    Ernst-Wolfgang Böckenförde lista, por exemplo, que o regramento constitucional da emergência deve estabelecer: a) as pré-condições e a ocorrência do estado de emergência, isto é, a regulação deve prever que apenas as situações extremas e não apenas problemas difíceis de serem resolvidos se torna um estado de emergência constitucional; b) o exercício dos poderes emergenciais cuja própria Constituição estabelecerá um dos órgãos que receberá o mandato; c) os objetivos e as restrições aos poderes emergenciais, cujo foco será sempre o restabelecimento da normalidade de tal modo a impedir a ocorrência de um "novo" normal. (5)

    Além do mais, a estrutura do estado de emergência constitucional pressupõe, então, uma distinção juridificada entre estado normalizado e estado de emergência da qual, desta...

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