Direito e Superexploracao do Trabalho: uma primeira aproximacao ao problema do Direito da periferia do capitalismo/Law and superexploitation of labour: a first approach to the problem of law of the periphery of capitalism.

AutorNeto, Rubens Bordinhao
  1. Introducao

    O problema do direito na America Latina ainda representa uma lacuna teorica. Embora sejam notaveis os esforcos academicos que propugnam uma atitude analitica propria, nao e possivel assinalar a existencia de uma teoria do direito preocupada com a especificidade do continente. Esta inquietacao cientifica e justificada quando se tem como norte a preocupacao de se compreender o direito a partir de uma perspectiva ontologica, ao modo esposado por Roberto Lyra Filho, para quem a resposta ao "o que e direito?" passa necessariamente pelo fato de que "ele [o direito] vem a ser, nas transformacoes incessantes do seu conteudo e forma de manifestacao concreta dentro do mundo historico e social." (LYRA FILHO, 1988).

    Parece ser justamente a localizacao do problema juridico na evolucao historica e social da America Latina a porta de entrada para uma compreensao do direito em sua manifestacao e conteudo concretos, ao menos para nos, latino-americanos. Por esta razao, um estudo da especificidade latino-americana perpassa pela teoria do direito marxista, cuja abordagem e a mais certeira para desvelar a realidade, uma vez que tem o compromisso cientifico de construir formulacoes teoricas acerca do problema juridico pari passu ao concreto. (3) Neste sentido, a nocao de "forma juridica", elaborada por Evgeny Pachukanis a partir dos escritos de Karl Marx, ao estabelecer um profundo vinculo entre o fenomeno juridico e a circulacao de mercadorias, oferece uma explicacao do objeto "direito" desde uma realidade pertinente e contundente a periferia do capitalismo, ja que a genese da America Latina remete-se a expansao do intercambio mercantil mundial. (4)

    Efetivamente, o papel latino-americano na divisao internacional do trabalho vem representando uma continua posicao de subordinacao. Esta peculiaridade historica (quando comparada aos paises da Europa ocidental), que determinou um desenvolvimento capitalista igualmente sui generis dos paises latino-americanos, conferiu-lhes a alcunha de economias dependentes, ou perifericas. E tributaria da teoria marxista da dependencia a ideia de uma relacao de dependencia calcada nao so em trocas desiguais, mas tambem na transferencia de mais-valia e na superexploracao do trabalho. Notadamente Ruy Mauro Marini, expoente desta teoria, e o responsavel pela percepcao de que o trabalho e a exploracao capitalista na periferia sao qualitativamente diferentes daquele desenvolvido no centro, sendo essa diferenca, de acordo com seu ponto de vista, o correto lugar para se compreender a dependencia.

    A iniciativa encampada pelos dependentistas marxistas, de perseguir uma explicacao mais proxima da realidade latino-americana, os levaram a conclusoes que os afastaram das respostas elaboradas por Karl Marx, sobretudo em "O capital", muito embora saiba-se hoje que o proprio Marx ja esclarecera que sua teoria refere-se a Inglaterra e, quando muito, a Europa Ocidental. (5) Neste mesmo empenho cientifico e que entendemos como oportunas as analises do fenomeno juridico que buscam localiza-lo no seu espaco e no seu contexto, razao pela qual o presente trabalho tem este principio como norte e almeja exatamente explicar o direito a partir de seu lugar, qual seja, a periferia do sistema capitalista. Logo, tendo como objetivo estabelecer as bases teoricas que fazem possivel refletir o direito da America Latina, tal esforco nos levara, no primeiro ponto, a esbocar o fenomeno juridico no pensamento de Karl Marx. No segundo e terceiro pontos, nos debrucaremos sob a tematica do trabalho, apresentando as bases teoricas da exploracao capitalista de acordo com os marcos marxistas, para, em seguida, sistematizar a forma desta exploracao na periferia do sistema capitalista, como teorizado por Ruy Mauro Marini. Por derradeiro, buscar-se-a esbocar algumas consideracoes que possam, a partir do exposto, estabelecer os subsidios para uma possivel teoria do direito da periferia.

  2. O lugar do direito no pensamento marxista

    Karl Marx nao se dedicou ao estudo aprofundado do direito. Nao ha, em sua vasta obra teorica, algo de "sistematico ou extenso sobre questoes de teoria juridica e de historia do direito ou sobre o lugar do direito na sociedade" (BOTTOMORE, p. 109). Nao obstante, ainda assim, e possivel depreender os contornos e as nuances que o fenomeno juridico se apresenta na teoria marxiana. Embora o direito esteja presente, de forma direita ou indireta, em praticamente toda producao teorica de Marx (nao nos esquecamos que ele graduou-se em direito antes de se doutorar em filosofia), nao se objetiva aqui debrucar-se sobre toda a vastidao das obras marxianas no afa de realizar uma arqueologia do tema. De maneira simploria, e sem pretensoes analiticas, buscar-se-a evidenciar o fenomeno juridico a partir de pequenas passagens emblematicas escritas por Marx que revelam, de alguma forma, o direito, bem como a interpretacao marxista posterior realizada por alguns juristas.

    A primeira delas encontra-se no panfletario "Manifesto do Partido Comunista", que foi impresso e publicado pela primeira vez em Londres, em 1848. Dirigido aos trabalhadores, este texto escrito em coautoria com Friedrich Engels denunciava o Estado, a racionalidade e a exploracao da classe burguesa, asseverando que as ideias desta classe sao "produto das relacoes burguesas de producao e de propriedade, assim como o direito nao e nada mais que a vontade de sua classe erigida em lei, uma vontade cujo conteudo e determinado pelas condicoes materiais de vida de sua propria classe" (MARX; ENGELS, 2008, p. 37). Daqui deriva a concepcao do direito enquanto instrumento social que, eivado de um carater classista, seria o reflexo, na superestrutura, das forcas produtivas e das relacoes materiais hegemonicas estabelecidas na infraestrutura, de tal modo que o direito expressaria tao somente os interesses da classe dominante, ja que, afinal, as "ideias dominantes de uma epoca sempre foram as ideias da classe dominante" (MARX; ENGELS, 2008, p.37). Esta interpretacao, porem, nao parece ser a mais acertada. (6) A natureza de classe do direito posto nao se discute, o que se debate e a posicao da esfera juridica na metafora marxiana, bem como a possibilidade de a mesma ser contraposta, dentro de si mesma, por outros interesses que nadam contra as ideias hegemonicas.

    Longe de ser homogeneo, o discurso do direito expressa interesses tanto dos grupos dominantes como dos grupos subordinados, sendo possivel pensar em um uso contra-hegemonico do direito, como assim se teorizou, aqui na America Latina, os partidarios do "Direito Alternativo" (CARCOVA, 1997). Inspirados no marxista italiano Antonio Gramsci, a esfera juridica retrataria um campo de batalhas, na qual as forcas hegemonicas e contra-hegemonicas disputariam posicoes em uma "guerra" dentro da ordem. (7) O direito teria, assim, um duplo carater: o de justificar as relacoes de poder estabelecidas e o de legitimar a reivindicacao por uma transformacao progressiva do estado de coisas (CARCOVA, 1997). O proprio Marx reconhece, sem ingenuidade, que o direito pode desempenhar um papel aliado a classe dos trabalhadores:

    os proletarios chegam a essa unidade atraves de um longo desenvolvimento, um desenvolvimento no qual o apelo a seus direitos tambem tem um papel. Esse apelo a seus direitos e, alias, apenas um meio para transforma-los em 'Vos', em uma massa revolucionaria e unida. (MARX, 2007). A despeito de serem as relacoes capitalistas de producao a forma hegemonica de producao da vida material, abrem-se fissuras (ou ao menos e possivel abrir) na esfera juridica para a manifestacao de forcas que vao contra o capital. Este vinculo entre direito e economia nao e esmiucado no "Manifesto", este documento politico tinha outro proposito. Uma teoria juridica que emana das relacoes materiais e de alguma forma apontada por Marx em sua obra-prima, que mais a frente sera analisada.

    Antes disso, outra passagem paradigmatica, para os fins deste trabalho, que revela um pouco mais da concepcao marxiana de direito, pode ser extraida da inspiradora "Critica ao Programa de Gotha", escrita em 1875. No que nos e pertinente, neste documento o pensador revolucionario alemao coloca em xeque a suposta igualdade do direito burgues, consagrada na "Declaracao dos direitos do homem e do cidadao". Marx assevera que a igualdade da ordem juridica burguesa e apenas formal, isto e, ela nivela todos os individuos de forma uniforme, e abstrai todas as determinacoes concretas, ignorando, inclusive, as diferencas de classe. Deduz Marx que o

    direito dos produtores e proporcional ao seu fornecimento de trabalho; a igualdade consiste em que ele e medido por uma escala igual: o trabalho. Mas um [individuo] e fisica ou espiritualmente superior a outro; fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar durante mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, tem que ser determinado segundo a extensao ou a intensidade, senao cessaria de ser escala [de medida]. Este igual direito e direito desigual para trabalho desigual. Nao reconhece nenhumas diferencas de classes, porque cada um e apenas tao trabalhador como o outro; mas, reconhece tacitamente o desigual dom individual--e, portanto, [a desigual] capacidade de rendimento dos trabalhadores--como privilegios naturais. E, portanto, um direito da desigualdade, pelo seu conteudo, como todo o direito. (MARX, 2014) Assim e que, almejando a igualdade, a ordem juridica burguesa significa, em verdade, direito da desigualdade. Nao a toa que, em favor de um "direito desigual" (e nao da desigualdade), que consubstancie uma igualdade material (nao apenas perante a lei), Marx cunha o principio regente de uma sociedade futura mais elevada: "De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!" (MARX, 2014). (8)

    A ficticia condicao de igualdade juridica, porem, e um mecanismo fundamental ao desenvolvimento do capital, pois, se reconhecendo como proprietarios privados--iguais...

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