O Direito Tradicional da Comunidade Quilombola do Ba

AutorLeite, Matheus de Mendonça Gonçalves
  1. Introdução (1)

    O processo modernização/colonização, iniciado em 1492, instituiu uma ordem social baseada na classificação racial da população que tinha por finalidade proporcionar um fluxo permanente de mercadorias, especialmente produtos tropicais (açúcar, algodão e outros gêneros agrícolas) e metais preciosos, para viabilizar a acumulação de capital nos países centrais da economia-mundo capitalista.

    A construção social de sujeitos raciais é uma das estruturas fundamentais da sociedade moderna/colonial, por meio da qual se faz a definição dos papéis sociais (políticos, econômicos e jurídicos), dos direitos/deveres e da distribuição dos recursos e oportunidades. Nesse contexto, a população é dividida nas raças branca, negra e ameríndia, atribuindo-se, a cada uma delas, papéis sociais, direitos/deveres e recursos/oportunidades a partir das características atribuídas às raças pelo discurso filosófico e científico hegemônico da modernidade. As três raças são estratificadas hierarquicamente e, consequentemente, justificam a divisão das pessoas em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivas e civilizadas.

    No imaginário hegemônico da sociedade moderna/colonial, os sujeitos brancos seriam os portadores das qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais que caracterizam a própria humanidade, dentre as quais se destacam a racionalidade, o senso de justiça e de honestidade, cabendo-lhes, portanto, as prerrogativas do exercício dos poderes políticos, econômicos e jurídicos nas sociedades modernas/coloniais.

    Por outro lado, os sujeitos negros são reduzidos a corpos comandados por instintos, pulsões irracionais e por uma hipersexualização, aproximando-se mais do animismo do que da humanidade, cabendo-lhes, então, assumir uma posição subalterna nos planos políticos, econômicos e políticos nas sociedades modernas/coloniais.

    Nesse sentido, Aníbal Quijano afirma que a sociedade moderna/colonial está assentada na estratificação racial da população, regulando a distribuição do poder social de acordo com o pertencimento à raça. O autor (QUIJANO, 1993, pp. 758/759) afirma que,

    [...] com a formação da América se estabelece uma categoria mental nova, a ideia de "raça". Desde o início da conquista, os vencedores iniciam uma discussão historicamente fundamental para as relações posteriores entre as pessoas deste mundo, e, em especial, entre os "europeus" e não-europeus, sobre se os povos originários da América possuem "alma" ou não; em síntese: se são ou não pessoas. A conclusão imediata decretada pelo Papado foi que são humanos. Porém, desde então, nas relações intersubjetivas e nas práticas sociais do poder, formou-se, de uma parte, a ideia de que os não-europeus possuem uma estrutura biológica não apenas diferente da dos europeus, mas, principalmente, pertencente a um tipo inferior. De outra parte, a ideia de que as diferenças culturais estão associadas a tais desigualdades biológicas e que não são, portanto, produto da história das relações entre as pessoas e destas com o resto do universo. Estas ideias foram configurando, de modo profundo e duradouro, um complexo cultural, uma matriz de ideias, de imagens, de valores, de atitudes, de práticas sociais, que não deixam de estar implicadas nas relações entre as pessoas, inclusive após o fim das relações políticas coloniais. Este complexo é o que conhecemos como "racismo". Como os vencedores foram adquirindo durante a Colônia a identidade de "europeus" e "brancos", as outras identidades foram associadas também à cor da pele, "negros", "índios" e "mestiços". Porém, nessas novas identidades, ficou estabelecida a ideia de sua desigualdade, concretamente de sua inferioridade cultural e étnica. Esta é a ideia que comanda e preside, desde o momento inicial da conquista, o estabelecimento dos papeis sociais, inclusive das atividades, atribuídos aos não-europeus na América. E é, desde aqui, que se transporta e se reproduz como modo específico das relações coloniais entre europeus e não-europeus, primeiro na Ásia e África, e mais tarde estendida a todas as relações entre europeus e não-europeus (tradução nossa). O discurso de desumanização das subjetividades negras constituiu um dos mais importantes elementos da tentativa de legitimação da sociedade moderna/colonial, cuja infraestrutura econômica se baseava no trabalho escravo de africanos, que eram utilizados nas plantations e na mineração de metais preciosos para a promoção da acumulação do capital mercantil. A partir da noção de colonialidade do poder, pode-se afirmar que as relações de subalternização da população negra não acabaram com o fim do colonialismo, mas se perpetuam até os dias atuais.

    O tráfico negreiro não trouxe, apenas, mão-de-obra escravizada para servir na empresa mercantilista dos produtos agrícolas tropicais e na mineração de metais preciosos, destinados à satisfação do mercado europeu. Trouxe, na verdade, pessoas, que, como tais, possuíam seus próprios sistemas de representação do mundo, constituído por suas religiosidades, manifestações artísticas, saberes éticos e técnicos, e práticas econômicas, dentre outros. É correto afirmar que, "nos porões dos navios, além dos músculos iam às ideias, os sentimentos, tradições, mentalidades, hábitos alimentares, ritmos, canções, palavras, crenças religiosas, formas de ver a vida, e o que é mais incrível: o africano levava tudo isso dentro da sua alma [...]" (Atlântico Negro--Na Rota dos Orixás, 1998).

    Os africanos escravizados reconstruíram, no Brasil, seus modos de ser e viver, com suas línguas, tecnologias, religiosidades, cosmologias, usos e costumes, dentre outros elementos diacríticos das culturas africanas, adaptando-os à realidade encontrada na vida colonial por meio formação de territórios de culturas negras, que se tornaram verdadeiros enclaves africanos no seio da sociedade moderna/colonial brasileira.

    A presença das culturas de matriz africana na vida cotidiana das pessoas é uma característica distintiva da sociedade brasileira, que pode ser percebida em diversos aspectos da vida social, tais como na culinária, na arquitetura, nas técnicas produtivas, dentre outros. Contudo, o racismo da sociedade moderna/colonial funciona, em suas múltiplas manifestações, para tornar invisíveis as culturas de origem africana no país. Nesse contexto, é importante destacar que:

    O Brasil é o mais importante país contemporâneo com registros das referências do continente africano "fora" da África. As referências estão gravadas, principalmente, nos seus territórios (urbano, rural, religioso, agrícola, comercial, cultural, tradicional, dentre outras dimensões possíveis da territorialização) e, sobretudo na sua população e na língua que falamos. São vários os componentes estruturais que explicam esta relevância africano-brasileira, mas três aspectos nos parecem pertinentes de destacar. Primeiro, foram nas grandes metrópoles coloniais (Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Recife, São Paulo, dentre outras) e nos vários pontos distribuídos pelo extenso litoral do Brasil para onde foram desembarcados os maiores contingentes de seres humanos de distintos grupos étnicos, matrizes culturais, tecnologias e contextos geográficos do continente africano. A história da humanidade não registra outro grande evento de mobilidade e transferência demográfica forçada que tenha tido tamanho massacre social, nas duas margens dos territórios envolvidos (África e América) e no próprio Oceano Atlântico, entre os séculos XV e XIX. As estimativas apontam entre 12 e 13 milhões como um número provável da dinâmica do tráfico para a "formação" e "ocupação" do "Novo Mundo" e é no Brasil onde estão projetadas as maiores estatísticas, ultrapassando os quatro milhões. Um segundo aspecto se refere ao desenvolvimento das grandes zonas de atividades econômicas coloniais (café, açúcar, borracha, algodão, cacau, fumo, mineração, dentre outros) estruturados na força de trabalho e na tecnologia de referência africana, ao longo de quatro séculos (XVI-XIX) e que revelam a dimensão económica e a extensão territorial da "presença ampla" africana na formação do Brasil. Somente estes dois componentes estruturais nos possibilitam entender porque o Estado brasileiro, numa perspectiva histórica, foi o território mais acabadamente escravista do "Novo Mundo", mesmo com os conflitos políticos e contradições econômico-sociais. Uma das evidências está na opção do sistema político dominante que continuou impondo o regime escravocrata, mesmo depois da "independência" de Portugal e, com essa estratégia, foi um dos últimos a sair do escravismo na América. Essa é uma premissa básica para a compreensão da extensão racista e preconceituosa que vai se consolidar na nossa estrutura social complexa, contraditória e multifacetada. O terceiro componente estrutural, está associado ao elevando contingente demográfico de matriz africana existente no Brasil contemporâneo (97 milhões de pessoas--Censo IBGE, 2010), ou seja, mais de 50% do "país continental" e este é o maior registro estatístico de ascendência africana "fora" do espaço da África. É esse "Brasil Africano" que tem sido a principal vítima da discriminação e preconceito étnico instaurado secularmente no país, sobretudo pela manutenção de algumas práticas do regime escravista e da ideologia racista na sociedade dominante. Não podemos perder de vista que a forma como o sistema nacional lida com a população brasileira de referência na África é, na verdade, a maneira como lida consigo mesmo enquanto país: negando a sua "riqueza" humana e cultural; não assumindo as suas "identidades"; negligenciando o trabalho realizado por outras matrizes étnicas e revelando uma "imagem de país" que não corresponde à realidade. Existe aí um atraso na mentalidade coletiva das elites seculares, um equívoco nacional, isso porque o Brasil não precisa mais assumir o racismo como estratégia para manutenção do poder histórico e conservador (ANJOS, 2014, p. 18). As comunidades...

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