O Direito à Vida e as Obrigações do Estado em Matéria de Saúde

AutorCelso Spitzcovsky
CargoAdvogado especialista em Direito Público Professor de Direito Constitucional e Administrativo
Páginas8-13

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A preocupação do homem com a sua saúde sempre foi uma constante como uma maneira de preservar a sua própria sobrevivência, sendo inúmeros os progressos realizados à medida em que a ciência avança e faz novas descobertas, multiplicando as possibilidades de tratamento.

No entanto, esta evolução cristalina das formas de tratamento de doenças, de preservação da saúde, enfim, veio acompanhada da multiplicação dos seus custos, o que tornou impossível, em muitos países, o acesso da população em geral a estas evoluções tecnológicas.

O próprio Estado, que surge como o responsável pela preservação deste acesso aos serviços de saúde, com o passar do tempo revelou-se incompetente ou impotente para fazer frente aos seus elevados custos.

Outrossim, de se registrar que a questão relacionada à saúde reflete serviço público que apresenta características específicas, posto que surge como uma das formas de garantia do direito à vida localizado no caput do artigo 5º da Constituição, caracterizando-se, pois, como cláusula pétrea.

Esta previsão, expressa pela primeira vez dentro de uma Constituição em nosso país, representa um avanço significativo nas relações sociais, na medida em que impede a possibilidade do legislador e do administrador criarem alguma situação que implique esvaziamento do conteúdo deste dispositivo constitucional.

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Importante consignar, também, que a previsão do direito à vida encontra íntima relação com um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, vale dizer, o da Dignidade da Pessoa Humana, relacionado no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, cujo conteúdo demanda investigações para que não se torne letra morta.

Em outras palavras, qualquer previsão legal, qualquer atitude tomada pelo Poder Público que provoque como conseqüência o esvaziamento do direito à vida trará, como corolário, o desrespeito à dignidade da pessoa humana, dois vetores considerados igualmente fundamentais pela Constituição.

Portanto, estabelecida a íntima relação existente entre o serviço de saúde e os conceitos de direito à vida e dignidade da pessoa humana, cumpre observar que a execução daquele, desconsiderando ou mesmo enfraquecendo esses valores básicos fixados pela Constituição, torna-se além de inadmissível, inconstitucional.

Dentro desse contexto, não se pode descurar para a necessidade de se estabelecer os parâmetros da atuação do Poder Público em relação ao serviço de saúde bem como a possibilidade de sua responsabilização pelo descumprimento dos seus deveres constitucionais.

Neste sentido, cumpre não perder de vista que a análise desta questão deve partir da interpretação dos dispositivos constitucionais pertinentes.

Este aspecto assume relevo na medida em que, sendo a Constituição um documento de natureza política, fruto de um pacto social, a interpretação de suas normas assume um caráter peculiar com regras próprias totalmente diferentes daquelas vislumbradas para a legislação infraconstitucional.

Em outras palavras, as características peculiares de um Texto Constitucional impõem a utilização de princípios específicos para a interpretação de suas normas, entre os quais destacamos, pela importância de que se revestem:

  1. Princípio da unidade da Constituição;

  2. Princípio da efetividade.

O princípio da unidade da Constituição impõe ao intérprete a obrigação de analisar as normas constitucionais, não de forma isolada, mas dentro do contexto em que se inserem, de maneira a evitar a existência de contradições, como bem captado pela melhor doutrina:

"O princípio da unidade da Constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que o Direito Constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas e, sobretudo, entre os princípios jurídicos-políticos constitucionalmente estruturantes. Como 'ponto de orientação', 'guia de discussão' e 'factor hermenêutico de decisão' o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão (...) existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio democrático e princípio socialista, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local etc.). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais, não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios1".

"O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões reais ou imaginárias que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou 'otimização' das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas. Também aqui, a simplicidade da teoria não reduz as dificuldades práticas surgidas na busca do equilíbrio desejado e na eleição de critérios que possam promovê-lo2".

Anote-se, por oportuno, que acerca dessa matéria não tem sido outro o entendimento consolidado tanto nos Tribunais quanto na melhor doutrina, conforme se verifica dos seguintes excertos:

"Uma disposição constitucional não pode ser considerada de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição, a qual representa uma unidade interna3".

"Todas

as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras normas constitucionais. A única solução do problema, coerente com este princípio, é a que encontre em consonância com as decisões básicas da Constituição e evite sua limitação unilateral e aspectos parciais 4".

Assim sendo, torna-se claro que a necessidade de levar-se em consideração este princípio encontra-se na obrigação do intérprete de procurar uma harmonia entre os dispositivos constitucionais de forma a fortalecer o todo em que se encontram inseridos.

De outra parte, o princípio da efetividade atribui a uma norma constitucional, em razão da posição por ela ocupada no ordenamento jurídico, o sentido que maior eficácia lhe ofereça.

Nesse sentido, encontramos as considerações de J. J. Gomes Canotilho: "Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA) é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)5".

Das lições do reconhecido jurista português cumpre destacar o trecho em que aponta ele para o campo de maior repercussão deste principio dentro das Constituições, vale dizer, o dos direitos fundamentais.

Assim sendo, toda vez que se apresentar qualquer sorte de dúvida quanto a interpretação de qualquer norma constitucional relacionada à prestação do serviço de saúde deverá se conferir a ela o sentido que maior eficácia lhe ofereça, ou seja, o sentido que lhe atribua maior densidade de forma a preservar a vida e a dignidade da pessoa humana.

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No mesmo sentido encontramos as lições de Jorge Miranda, outro notável jurista português, que assim se pronunciou:

"Deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação6".

Portanto, qualquer interpretação que se pretenda oferecer a um dispositivo constitucional, mormente para aqueles inseridos entre os direitos fundamentais, que importe retirar ou mesmo diminuir a sua eficácia, deverá ser considerada inconstitucional.

De outra parte, sobreleva notar que embora tenham todas as normas constitucionais o mesmo patamar hierárquico, algumas delas apresentam um campo de irradiação maior, razão pela qual surgem como parâmetros de interpretação das demais.

São os princípios constitucionais que pela importância que representam merecem uma análise especial na medida em que surgem como paradigma para que se possa alcançar a correta...

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