Os direitos fundamentais - Rescensão da obra de Maurizio Fioravanti Appunti di Storia delle Costituzioni Moderne. Le Liberta Fondamentali

AutorArmindo Saraiva Matias
Páginas173-182

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1. Os objectivos da obra de Fioravanti

Maurizio Fioravanti,2 Professor italiano de História das Constituições Modernas, deparou, no seu ensino, com a necessidade de explicar aos alunos o fundamento do fenómeno universal do constitucionalismo moderno que é o da consagração das liberdades, dos direitos individuais fundamentais.

E, desde logo, teve de colocar a questão de saber se o constitucionalismo moderno é fruto da criação, pelos Estados, de um núcleo de normas modernas, recentemente criadas, logicamente ordenadas, ou, antes, o resultado do evoluir da história, das tradições jurídico-culturais de cada povo.

Fioravanti não poderia, obviamente, afirmar qualquer destas teses sem a demonstrar. E para a demonstração terá de lançar-se no estudo da história do direito.

É esse estudo de história, é essa análise detalhada dos movimentos políticos e das revoluções que o vai determinar pela conclusão de que o constitucionalismo moderno não é uma criação recente, é o resultado de uma evolução lenta, de doutrinas, tradições, culturas, revoluções.

É quanto vai ensinar aos seus alunos através do livro que, na sua primeira edição, despretensiosamente, designou de Appunti di Storia delle Costituzioni Moderne. Le Liberta Fundamentali.

Pois bem: foi o interesse que a leitura deste livro despertou em nós que motivou a presente recensão, esperando poder desafiar a curiosidade de outros leitores para a síntese compacta e brilhante que é esta obra do autor italiano.

2. A fundamentação teórica das liberdades

Fioravanti deixa a discussão teórica da liberdade individual para os filósofos e tenta

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a fundamentação teórica das liberdades, no plural.

E entende haver três modelos para fundamentar essas liberdades: o modelo historicista, o modelo individualista e o modelo estatista. Obviamente, cada um destes modelos combina-se com os outros dois.

Ora, é a compreensão destas combinações que explicará os direitos fundamentais constinacionalmente consagrados. Vejamos, então, detalhadamente, cada um daqueles três modelos,

O modelo historicista

Ao contrário do que é habitual pensar-se, foi na Idade Média, e não depois, que se constituiu a tradição europeia da necessária limitação do poder político. Seria, pois, demasiado redutor estudar, para o efeito, apenas os séculos XVII a XIX.

Com efeito, um estudo detalhado da realidade medieval permite identificar não apenas uma norma geral e abstracta, de garantia, como também a presença de um direito objectivo, radicado no costume que define a cada um o seu lugar, isto é, os seus direitos e os seus deveres, começando pelos mais poderosos.

Trata-se de um jus involuntarium que nenhum poder foi capaz de definir e sistematizar por escrito.

Todavia, ele assenta num contrato de dominação entre o senhor e os subordinados, nele se dispondo, com frequência, sobre a necessidade de consenso das assembleias representativas para a imposição de tributos extraordinários.

O senhor que violasse as regras do contrato seria havido como tirano.

Chama-se, por vezes, a atenção para a Magna Charta de 1215, que teria continuidade até à Petition of Rights de 1628, ao Habeas Corpus Act de 1679, ao Bill of Rights de 1689, até ao constitucionalismo moderno.

Nele se encontra já a estrutura corporativa da Idade Média, quando dispõe que nenhum homem livre poderá ser detido ou preso, privado dos seus direitos ou bens, senão por sentença judicial dos seus pares.

Conclui Fioravanti que, neste modelo, o que sobressai são as liberdades civis, a liberdade como segurança; as liberdades políticas seriam meramente acessórias, relativamente às civis. O modelo historicista esgotaria aí a sua potencialidade.

O modelo individualista

Na análise do autor, a cultura historicista encontra, na Idade Média, a grande tradição europeia do governo moderado e limitado; já a Idade Moderna propugna a consagração dos direitos individuais e de aperfeiçoamento.da sua tutela.

Haveria, assim, forte oposição entre as duas concepções: na medieval, os direitos e deveres seriam atribuídos aos indivíduos segundo a sua posição na sociedade; na concepção moderna, afirma-se o direito individual, iniciando-se com as declarações revolucionárias, especialmente com a Revolução Francesa de 1789.

E, do mesmo passo que esta concepção vai conhecer a maior concentração de poderes da história, sob a forma de Estado absoluto ou sob a forma do poder revolucionário intérprete da vontade geral, o certo é que as modernas Constituições vão garantir os direitos e liberdades frente ao exercício arbitrário do poder estatal.

Esta concepção conduzirá, por outro lado, à presunção da liberdade consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Todavia, o modelo individualista dis-tingue-se do estatista porque se presume a existência da Sociedade Civil dos indivíduos, anterior ao Estado. E necessário o Estado para garantir os direitos, mas a Sociedade é anterior ao Estado.

Distingue-se, ainda, por outra razão: a da existência do poder constituinte criador das liberdades políticas "positivas".

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Na concepção estatista, o poder apenas nasce com o Estado; na concepção individualista, ou contratualista medieval, antes do Estado existe a Sociedade.

Haveria, assim, uma constituição prévia limitadora dos poderes do Estado.

Deste modo, o modelo individualista distinguir-se-á do estatista quer porque pressupõe uma Sociedade anterior impondo a presunção geral da liberdade e, ainda, pela existência de um poder constituinte já estruturado.

O modelo estatista

Neste modelo, não haveria um contrato em que as partes se outorgam mútuas vantagens; deriva, antes, de um contrato unilateral, irreversível, em que todos se submetem a um sujeito investido com o monopólio do poder. É este soberano que faz respeitar os direitos individuais.

No modelo estatista, admite-se e afirma-se que o Estado nasce da vontade dos indivíduos; todavia, essa vontade não pode ser representada por um contrato social, entendido como composição de interesses individuais; trata-se antes, de um pacto.

Os indivíduos não defendem os seus interesses, mas necessitam (desesperada-mente) de uma ordem política. Os indivíduos passam, então a constituir a nação, o povo, mas apenas porque existe o Estado.

3. As revoluções e as doutrinas das liberdades

Revolução Francesa

No caso da Revolução Francesa, diz Fioravanti, assiste-se a uma combinação entre o modelo individualista e contratualista por um lado, e estatista, por outro lado. A grande novidade da Revolução Francesa, aliás, algo perturbadora, foi a de fazer aparecer uma Sociedade Civil unificada na perspectiva da vontade política constituinte, como povo ou nação.

Nasce, com ela, o direito de voto que assume um novo significado: este direito de voto permite aos cidadãos delegar o exercício das funções públicas na classe política.

Deste modo, o povo deixa de existir como sujeito de soberania política e, em seu lugar, aparece o sistema de poderes constituídos, conduzido pelos representantes eleitos.

De um lado, sobressai um constitucionalismo com regras complexas de revisão constitucional, mas sem conseguir assegurar a sua efectividade; de outro lado, existe uma busca desesperada de encontrar um garante da constituição.

Segundo Fioravanti, todo o debate revolucionário francês sobre a Constituição e sobre a garantia dos direitos está precedida pelo debate sobre a soberania do poder constituinte ou dos poderes constituídos, do povo soberano ou seus representantes.

Revolução Americana

Há quem afirme (como Matteucci) que o. constitucionalismo moderno, entendido como técnica de limitação de poderes, nasce mais da Constituição Federal americana que da Revolução Francesa.

Na verdade, enquanto na Revolução Francesa estão, lado a lado e em permanente tensão, o modelo individualista e o modelo estatista, na Constituição americana combina-se o individualismo e o historicismo, com exclusão das filosofias estatis-tas europeias da soberania política.

Com efeito, a cultura revolucionária americana dos direitos e liberdades é, ao mesmo tempo, de carácter historicista e individualista. E será assim porque o historicismo e o individualismo americanos não são iguais aos europeus.

O...

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