Direitos Humanos e Processo Civil

AutorGelson Amaro de Souza
CargoDoutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP; Ex-Diretor e atual Professor da Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP – AET e da Faculdade de Direito de Adamantina – FAI; Procurador do Estado (aposentado); Advogado em Presidente Prudente-SP
Páginas94-150

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1. Noções preliminares

Urge ressaltar preliminarmente que em todas as sociedades evoluídas há uma perene preocupação com o ser humano e a busca constante de providências e medidas no sentido de aprimoramento do atendimento às pessoas para, comPage 95 isso, atingir o mais completo aperfeiçoamento possível do convívio social, com vistas à salvaguarda da dignidade humana.

O esforço para se encontrar fórmula para o alcance da dignidade humana tem levado as sociedades modernas a descobrirem novos caminhos, através das mais variadas técnicas aplicadas em todo e qualquer setor da ciência. Se assim é, no campo da engenharia, da medicina e dos demais ramos da ciência social, no direito, sabidamente integrante desta última, não poderia ser diferente.

Os avanços, até então, experimentados pelas mais diversas e modernas legislações contemporâneas, têm demonstrado não ser em vão a procura para detectar falha e aperfeiçoar o direito em busca de um melhor atendimento aos direitos humanos e, com esses, pôr em relevo a dignidade da pessoa humana.1

O direito, como se sabe hoje, existe, para atender os interesses das pessoas integrantes da sociedade2 e, não mais, como era visto no passado, quando se imaginava que ele existisse somente para atender os caprichos dos governantes e de alguns3 poucos poderosos.

Observa JABUR4 que a escola naturalista enfatizou e resgatou a primazia dos direitos naturais, ou seja, aqueles essenciais e inatos do ser humano, antevisto primordialmente pelo cristianismo, pela qual revigorou a teoria dos direitosPage 96 originários e fundamentais do indivíduo, saindo da abstração para a concretização, para dar lugar à atuação contra o Estado autoritário, cujo arbítrio não se tolera mais. Conforme ensina MAZZUOLI,5 no Brasil, não se tem utilizado todos os meios disponíveis ao seu alcance para efetivar a observância aos direitos humanos. É certo que existem esforços nesse sentido, mas ainda não se atendeu e nem se atende de forma ampla os direitos mínimos necessários à dignidade do ser humano.

Todavia, com essa nova realidade, põem-se em relevo os princípios da humanização e, as sociedades mais avançadas vêm dando exemplo de respeito à pessoa e ampliando cada vez mais a incidência dos direitos humanos. Pena que em uma sociedade como a nossa, onde ainda perdura o coronelismo político e a prioridade ao capitalismo selvagem, os direitos humanos fiquem para um segundo plano6.

Não se pode negar algum avanço legislativo nesse aspecto, mas além de ser uma evolução legislativa ainda muito tímida, nem sempre aquilo que é estabelecido na lei encontra ressonância na prática. Exemplificativamente, lembra-se que o sistema jurídico contempla o direito à habitação e que, apesar disso, muita gente não tem onde morar7. Também o sistema assegura o direito à vida e, no entanto, todos os dias os noticiários dão conta de que centenas de pessoas perdem a vida, por falta de segurança, falta de atendimento médico e às vezes até mesmo, por falta de alimentos. Ainda, o sistema jurídico assegura a liberdade de pensamento e a de locomoção e não raro se vê casos de censura e impedimento da livre expressão do pensamento e pior ainda, casosPage 97 de privação da liberdade com prisão até mesmo sem previsão em lei.8 A Constituição Federal assegura o direito de propriedade, mas freqüentemente se vê, pessoas ficarem privadas de seus bens, sem o devido procedimento legal.9

2. Conceito de direitos humanos

Quando se usa a expressão “direito” já se está inferindo tratar-se de relação entre pessoas, visto que somente entre estas é que se pode falar em direito. Quando se usa o termo “humano” está se referindo também a pessoa, visto que somente a pessoa natural pode ser considerada como ente da estirpe humana. No entanto, como força de expressão, sempre que se quer referir a pessoa, tornou-se corrente utilizar a expressão “pessoa humana”, como é comum dizer-se “dignidade da pessoa humana”. Direitos humanos são aqueles necessários para que uma pessoa possa ter uma vida com dignidade. Talvez o primeiro e o maior de todos seja o respeito ao que todas as pessoas têm direito e nem sempre é reconhecido pelos poderes públicos.

Também quando se diz direitos humanos, está se referindo aos direitos da pessoa. Mas não são quaisquer direitos, restringindo-se àqueles ligados de forma mais íntima à natureza da pessoa. São os direitos fundamentais da pessoa, norteados por sua natureza, ou seja, aquilo que a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte. Direitos que, direta ou indiretamente, visamPage 98 proteger a dignidade da pessoa10. São aqueles direitos básicos e imprescindíveis à dignidade do ser humano.11

O positivismo procura fazer do direito uma ciência12, e o humanismo, por sua vez, procura nas ciências naturais a origem do direito.13 Por isso a dignidade do ser humano é fim e não meio. O direito positivo é apenas meio para se chegar ao fim que é o respeito à dignidade da pessoa.14 A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.15

Os direitos humanos têm de serem vistos em conformidade com a natureza e a individualidade da pessoa, muito embora a pessoa não viva isolada, sempre fazendo parte integrante da sociedade. Como uma aeronave não pode ser cuidada apenas em seu conjunto, merecendo atenção peça por peça, sobre pena de, por maltrato de uma, ser todo o conjunto prejudicado. Assim também é a sociedade que não pode ser vista apenas em seu conjunto, pois, há necessidade de cuidar-se da individualidade de cada pessoa.

Assim, o conceito de direitos humanos pode ser representado pela teoria kantiana de espaço e tempo16. Considerando a humanidade como o tempo, cada pessoa é como se fosse uma hora. Se não existir essa hora, não haverá a integridade do tempo. Em outros termos, somente se terá o tempo se se considerar a hora unitariamente. Desta forma, somente existe a sociedade, sePage 99 antes existir a pessoa individualmente considerada. Sem a pessoa individualmente considerada, não haverá sociedade. A sociedade, como um todo, deve respeitar e defender a pessoa individualmente, em busca de sua dignidade. A dignidade da pessoa não é uma criação do constituinte, que apenas reconhece a sua existência.17

Pode-se dizer, com MORAES18, que o conjunto de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana, pode ser definido como direitos humanos fundamentais. Ou ainda, como diz SANTOS19, a dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Os direitos humanos, de uma maneira geral, estão consagrados e garantidos na Constituição Federal, sem contudo, esgotá-los. A Constituição não esgota todos os direitos humanos, mas se os ali consagrados fossem respeitados já estaria bom demais.

Os direitos humanos devem ser entendidos como uma categoria prévia, legitimadora e informadora dos direitos fundamentais, assim como os direitos fundamentais seria uma categoria descritiva dos direitos humanos20, por terem seu fundamento em um sistema de valores prévio, de ordem natural e universal que tem força jurídica, mesmo não estando positivado. Não se pode perder de vista que os direitos humanos são, em verdade, todos aqueles inerentes à pessoa e conforme a sua natureza. Daí a razão utilizada por MAZZUOLI, paraPage 100 dizer que todos os direitos humanos são universais, individuais, interdependentes e inter-relacionados.21

O sistema constitucional brasileiro é bastante abrangente no que diz respeito aos direitos humanos, pena é que a legislação infraconstitucional nem sempre os respeita e, muitas vezes, quem não os respeita é o intérprete ou o aplicador do direito. Isso é uma constante na órbita civil, como a utilização de medidas drásticas e violadoras dos direitos humanos, sem lei alguma que autorize tal medida.22 Em decorrência disso se percebeu MAZZUOLI com acuidade observa: “Assim é que, no atual estágio de evolução da sociedade, com a constante cada vez mais crescente de desrespeito e de atrocidades, é preciso que se busque, seja no direito nacional, seja no internacional, saídas eficazes para solução do problema diário de violação dos direitos[...]”23

3. A supremacia dos direitos humanos

Os direitos humanos estão entre os chamados super-direitos, visto que devem ser respeitados e acolhidos, mesmo que não previstos expressamente na lei positiva. Representam princípios de ordem...

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