Direitos Humanos entre redes e camadas

AutorMarcelo D. Varella/Nitish Monebhurrun/André Pires Gontijo
Páginas19-61
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Capítulo 1
Direitos Humanos entre redes e camadas
A proteção jurídica dos direitos humanos se realiza por meio da
articulação entre normas, princípios e jurisprudências nacionais, regionais
e internacionais. A proteção dos direitos humanos também se realiza por
diferentes mecanismos privados nacionais ou transnacionais, que por vezes
complementam, por vezes agem de forma independente ou mesmo contra
a atuação estatal ou interestatal. Hoje em dia, o debate se expandiu para
além dos Estados ao considerar, por exemplo, o papel das empresas
privadas na proteção dos direitos humanos1. Essa miríade de normas,
interpretações e participações públicas e privadas, resulta na construção de
direitos humanos em múltiplas camadas e possibilita amplo leque de
opções aos operadores jurídicos, o que alguns autores denominam de
direitos humanos a la carte.2
A disciplina direitos humanos pode ser definida como o conjunto
de princípios e regras, fundados no reconhecimento da dignidade, inerente
a todos os seres humanos e que busca assegurar o seu respeito universal e
efetivo3. Pode ser contextualizado como o ramo Proteção internacional da
pessoa humana4, que compreende, por sua vez, também o direito
humanitário e o direito dos refugiados. O direito humanitário seria aquele
aplicado aos conflitos armados nacionais ou internacionais. O direito dos
refugiados refere-se à proteção das pessoas que se encontram fora do seu
país, em virtude de perseguições, guerras ou desastres.
1 B ERNAZ N. Business and Human Rights. History, Law and Policy Bridging the
Accountability Gap, London, Routeledge, 2017, 313p; DEVA (S.), BILCHITZ (D.) [org.],
Building a Treaty on Business and Human Rights, Cambridge, Cambridge Universit y
Press, 2017, 516p.
2 TURGIS, Sandrine. Les interactions entre les normes internationales relatives aux droits
de la personne. Paris: Pédone, 2010
3 TURGIS, S. citando MARIE, Jean-Bernard. Dictionnaire encyclopédique de théorie et
de sociologie du droit, André Jean Arnaud (dir.), L.G.D.J., Paris, 2 ed., 1993, p. 208
4 CIJ. Contencioso Barcelona Traction, decisão de 05.02.1970.
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Esse ramo do direito que já era complicado, ou seja, de difícil
previsão pela multiplicação de normas e tribunais, torna-se com o tempo
cada vez mais complexo ou imprevisível, porque em muitos casos, normas
genéricas dão suporte a decisões incompatíveis entre si. Há um processo
de intensificação, multiplicação5 ou inflação6 de soluções jurídicas, tanto
no plano normativo, como entre os mecanismos de controle. A hierarquia
normativa e os efeitos desses novos instrumentos são alterados em
praticamente todo o mundo, desafiando inclusive a teoria das fontes do
direito internacional.7 O resultado é a formação de camadas de normas e
decisões que ora são reforçadas, ora são contraditas no nível nacional,
regional, transnacional e internacional, público e privado.
Para tratar desse tema, é importante em um primeiro momento
apresentar o processo de multiplicação de normas de direitos humanos e a
densificação da jurisprudência internacional para, em seguida, discutir
como esses andamentos contribuem para a criação do emaranhado jurídico
que fica disponível aos operadores do direito.
1. A multiplicação de normas
A multiplicação de normas em matéria de direitos humanos ocorre
sobretudo a contar de 1990. É certo afirmar que um primeiro conjunto
normativo nasce a partir da revolução francesa, principalmente no tocante
aos direitos civis e políticos. É menos conhecido, mas a atual região do
Mali, na África ocidental, conheceu no século 13 a adoção de uma Carta
referente ao que seriam hoje os direitos humanos. É uma verdadeira
declaração de direitos humanos. Chama-se Carta de Mandem ou de
Kurukan Fuga, proclamada pelo império do Mali (ou Mandinga) e que já
continha vários princípios frisando, por exemplo, o direito à vida,
integridade, proteção do meio ambiente, propriedade (notadamente a
propriedade coletiva), proteção dos estrangeiros, à honra e à solidariedade.
5 Ver em especial a coleção de Mireille Delmas-Marty, Les forces imaginantes du droit,
publicado em diversos volumes pela Presses Universitaires de France.
6 TURGIS, S., ob. cit., p. 30.
7 VARELLA, M. D. Internacionalização do direito: direito internacional, globalização e
complexidade. Brasília: UniCEUB, 2013.
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A Carta sempre existiu de forma consuetudinária, passando de gerações a
gerações oralmente. Por ser uma região pouco estudada em termos de
contribuições africanas ao direito internacional, a existência e o teor da
carta foram negligenciados; ela proporciona, no entanto, fontes de suma
importância para o estudo do tema8.
A partir da segunda guerra mundial, com a criação da ONU, há um
novo impulso na produção normativa internacional, a exemplo de grandes
tratados. Com o avanço do processo de interdependência estatal e, nos anos
90, a globalização econômica, há a multiplicação dos tratados universais e
a densificação de um direito privado transnacional. Os núcleos construídos
se concentram em quatro categorias distintas:
a) Direitos de liberdade e segurança pessoal: vida, liberdade,
segurança, proibição da escravidão, tortura, tratamento cruel ou
degradante, prisão arbitrária, reconhecimento da pessoa como detentora de
direitos, igualdade perante a lei, presunção de inocência;
b) Direitos na sociedade civil: proteção da privacidade
familiar, do lar, da correspondência, liberdade de movimento dentro do
território do Estado, direito de emigrar, direitos iguais entre homens e
mulheres para casamento e divórcio, direito de consentir com o casamento;
c) Direitos políticos: liberdade de pensamento, consciência e
religião, associação, de votar e ser votado, de sufrágio universal e de
eleições periódicas e genuínas;
d) Direitos econômicos, sociais, civis e culturais:
alimentação, vestuário, habitação, tratamento médicos adequados,
educação gratuita, obrigatória, liberdade de escolha de trabalho,
remuneração justa, igualdade de salários entre homens e mulheres, direito
de sindicalização, quantidade razoável de horas, assistência social.9
8 MUBIALA M., The Contribution of African Human Rights Traditions and Norms to
United Nations Human Rights Law, Human Rights and International Legal Discourse,
vol.4, no.2, 2010, pp.210-240.
9 BEITZ, C. R, The idea of human rights. New York: Oxfo rd University Press, 2009, p.
28.

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