Direitos humanos, transexualidade e "direito dos banheiros"/Human rights, transexual identity, and "bathroom law".

AutorRios, Roger Raupp

Introducao

Este artigo objetiva examinar, sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais, os principais argumentos diante da pergunta sobre o direito de transexuais femininas utilizarem banheiros femininos abertos ao publico conforme sua identidade de genero. Tomando como ponto de partida alguns episodios registrados na midia nacional e as respectivas reacoes e, em especial, a decisao do Supremo Tribunal Federal (STF) que admitiu a repercussao geral em litigio que veicula essa questao (parte 1), procede-se, mediante o aporte do debate juridico estadunidense, a analise dos argumentos invocados no processo constitucional (parte 2), concluindo-se pelo direito fundamental a utilizacao de banheiros publicos femininos por transexuais femininas, bem como pela incompatibilidade de alternativas que proponham banheiros especificos para transgeneros.

  1. Identidade de genero e banheiros publicos: a controversia social e a repercussao geral constitucional

    Questoes juridicas relevantes, especialmente no campo dos direitos fundamentais, nao sao exercicios diletantes de curiosidade e especulacao intelectual descompromissadas. Elas nascem de reivindicacoes por tratamento justo e controversias interpretativas sobre a extensao das previsoes constitucionais invocadas em seu favor. Dai a necessidade de dimensionar os atores sociais envolvidos e as consequencias decorrentes das pretensoes apresentadas, tanto na arena social e politica, quanto na conformacao do ordenamento juridico vigente.

    1.1. A controversia social e juridica

    O uso de banheiros publicos e uma questao delicada para travestis e transexuais. Shoppings, academias, reparticoes publicas, empresas e diversos outros espacos coletivos separam os banheiros a partir de uma logica binaria que reconhece dois sexos plausiveis. Assim, sao designados banheiros para homens e outros para mulheres. Identificadas socialmente por um genero distinto de seu sexo biologico, travestis e transexuais muitas vezes enfrentam problemas quando precisam utilizar estes espacos. Isso porque, nem sempre sao permitidas a frequentar o banheiro coerente com o seu genero, sob o argumento de que gerariam constrangimento as demais pessoas que utilizam este espaco. Contudo, maior ainda e o constrangimento para uma travesti, identificada e vestida com roupas femininas, ingressar num banheiro masculino. Ainda que esse artigo considere, em sua segunda, a questao especifica pertinente a transexuais femininas utilizarem banheiros publicos femininos, o panorama tracado nessa secao aconselha um olhar mais abrangente, alcancando tambem travestis.

    Esta disputa por qual banheiro deve ser utilizado pelas travestis e transexuais frequentemente ganha espaco na midia e no Poder Judiciario, sendo retratada a partir de diversos pontos de vista, seja em apoio as travestis e transexuais, seja defendendo que nao devam utilizar o banheiro feminino. Neste ultimo sentido, salientamos a noticia que retrata o caso de funcionarias de shopping Center que criaram abaixo-assinado objetivando a proibicao do uso do banheiro feminino por transexual (R7, 2014), sob o argumento de que se sentem constrangidas por dividir o mesmo espaco com uma pessoa trans. Na mesma linha, posicoes religiosas sao adotadas no sentido de que, apesar de se identificarem com o genero feminino, travestis e transexuais possuem orgaos reprodutores masculinos (inclusive aquelas que se submeteram a cirurgia de transgenitalizacao), e assim, sao consideradas homens. Aceitar que frequentem o banheiro feminino significa obrigar as mulheres que la estao a se desnudar na frente de um homem, o que violaria sua intimidade e privacidade. Assim, a solucao seria a "criacao de mais dois enquadramentos: locais para uso de 'homens com compleicao feminina' e de 'mulheres com compleicao masculina'". (SILVA JUNIOR; MAGALHAES FILHO, 2014)

    Estas questoes chegam tambem ao Poder Judiciario. Ao analisar o caso de travesti proibida de utilizar o banheiro feminino em um bar, o Tribunal de Justica de Sao Paulo negou a indenizacao por danos morais que foi requerida, entendendo que nao ha ofensa nesta proibicao, ja que a autora nao e mulher, e assim, nao deve frequentar o banheiro feminino. Ainda, entendeu que a autora (nomeada no julgamento por pronome masculino) nao sofreu discriminacao, na medida em que nao foi tratada como inferior, apenas como diferente do sexo feminino, "o que de fato e, pois ainda que sua autoimagem seja feminina na realidade pertence ao genero masculino, com todos os atributos de tal genero, ja que nao e transexual (nao ha noticia de ter realizado a cirurgia de transgenitalizacao)". (SAO PAULO, 2014)

    O Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul tambem decidiu de forma contraria a indenizacao por dano moral no caso de travesti proibida de ingressar em banheiro de shopping, entendendo que nao houve comprovacao de constrangimento, abalo psicologico e afetacao moral, e que estes nao podem ser presumidos. Assim ficou registrado na ementa:

    DANO MORAL. ALEGACAO DE CONSTRANGIMENTO POR SEGURANCAS DO SHOPPING QUE ENTRARAM NO BANHEIRO DO ESTABELECIMENTO PARA IMPEDIR A ENTRADA DA AUTORA, POR SE TRATAR DE TRAVESTI. AUSENCIA DE DEMONSTRACAO DO CONSTRANGIMENTO, DE ABALO PSICOLOGICO E DE AFETACAO MORAL, OS QUAIS, COMO CONDICOES PESSOAIS, NAO PODEM SER PRESUMIDOS. APELO IMPROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL, 1999) Por outro lado, a posicao de ativistas e defensores dos direitos humanos e no sentido de que a proibicao da utilizacao do banheiro conforme o genero de identificacao configura discriminacao, violando seus direitos (G1, 2013). Quando questionadas, travestis e transexuais afirmam que se sentem constrangidas em utilizar o banheiro masculino e que no feminino passam despercebidas:

    "Como voce se apresenta feminina, logicamente voce vai cumprir papeis femininos. Entao, procuro utilizar o banheiro feminino porque a nossa sociedade esta divida por binarismo, femininos e masculinos", diz Janaina Lima, travesti e integrante do Conselho de Atencao a Diversidade Sexual (CADS) de Sao Paulo. Janaina garante, ainda, que seria constrangedor para os homens utilizarem o banheiro com a presenca feminina. "Nao me sentiria a vontade para usar o banheiro cercada de homens e, no banheiro feminino, acabo passando despercebida e nao ha assedio nem constrangimento", pontua. (RBA, 2014) Neste sentido, recente decisao do Tribunal Regional do Trabalho da 9 (a) Regiao (Parana, 2014) analisou o caso de trabalhadora transexual hostilizada por seus colegas de trabalho e proibida de utilizar o vestiario e o banheiro femininos. A indenizacao por danos morais foi indeferida, aduzindo que "a utilizacao dos vestiarios masculinos pela autora, que possui auto-identificacao com o genero feminino, mas tem aparencia do genero masculino, por si so, nao e capaz de ensejar o pagamento de indenizacao por dano moral" (PARANA, 2014). Em grau recursal, a relatora vislumbrou conflito entre o direito fundamental da intimidade da trabalhadora e o das demais empregadas e, fazendo a ponderacao entre eles, concluiu pela restricao do direito a intimidade da trabalhadora transexual em favor dos direitos das demais, votando pela manutencao da sentenca. Essa posicao acabou vencida, dado que a maioria entendeu que a proibicao do uso dos vestiarios e banheiros femininos configuraria afronta a dignidade humana. A maioria tambem salientou que, sendo de conhecimento dos colegas e superiores hierarquicos que ela se identifica com o genero feminino, trata-la como homem configura discriminacao; ressaltou tambem que os banheiros e vestiarios sao privativos, o que garante o direito a intimidade de todas as envolvidas, pontuando que "a situacao de a autora ser vista de lingerie perante os empregados do sexo masculino me parece mais desconfortante do que as empregadas do sexo feminino serem vistas de lingerie pela parte autora, que tambem se ve como mulher." (PARANA, 2014)

    O Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul tambem decidiu pela indenizacao por danos morais a travesti proibida de utilizar banheiro feminino em supermercado:

    o que aconteceu no estabelecimento da demandada foi homofobia e preconceito, o que impoe medidas energicas daquela administracao para evitar que isto ocorra, nao apenas orientando, mas tomando providencias, quem sabe, para a instalacao de banheiro alternativo e que nao exponha o homossexual a constrangimentos. (RIO GRANDE DO SUL, 2014) Ja o Tribunal de Justica de Sao Paulo, diante de transexual proibida de utilizar o banheiro feminino e expulsa de academia, decidiu pela manutencao da sentenca deferitoria de danos morais. A fundamentacao do julgado chama a atencao por considerar legitima a proibicao de utilizacao sanitaria por transexual, e, ao mesmo tempo, condenar o estabelecimento por considerar inadmissivel sua conduta, "uma vez aceita a matricula e sendo informada dessa condicao, nao podia a academia excluir o aluno como forma de castigo, sem pelo menos uma advertencia previa se entendia que o ato atentava contra as suas posturas". (SAO PAULO, 2008)

    Importante registrar, no encerramento desse breve panorama, a edicao da Resolucao no 12, do Conselho Nacional de Combate a Discriminacao e Promocoes dos Direitos de Lesbicas, Gays, Travestis e Transexuais, de 16 de janeiro de 2015 (CNCD, 2015), estabelece parametros para a garantia de acesso e permanencia de travestis e transexuais em diferentes espacos sociais. Ali estao orientacoes sobre o uso do nome social oralmente, em formularios e sistemas de informacao, nos espacos de ensino e em documentos oficiais. Ainda, recomenda a garantia do uso de banheiros, vestiarios e demais espacos segregados por genero, de acordo com a identidade de genero de cada pessoa. A resolucao e recente, sendo impossivel aferir sua efetividade. Contudo, quando de sua publicacao, repercutiu positivamente na midia (O DIA 2015); (UOL, 2015), por garantir a dignidade humana e promover o direito a educacao de pessoas transexuais e travestis, ainda que se registre dificuldade diante...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT