Discernimento da pessoa humana e sua relevância para o regime jurídico da prescrição e da decadência

AutorRodrigo da Guia Silva/Eduardo Nunes de Souza
Páginas99-166
Discernimento da pessoa humana e
sua relevância para o regime jurídico
da prescrição e da decadência
Rodrigo da Guia Silva
Eduardo Nunes de Souza
Sumário: Introdução: prescrição, discernimento e autorresponsa-
bilidade. 1. Discernimento, incapacidade civil e sua relação com a
deflagração dos prazos prescricionais e decadenciais. 2. O credor
incapaz ou com discernimento reduzido e sua proteção quanto ao
termo inicial dos prazos de prescrição e decadência. 3. Mudanças
supervenientes da capacidade ou do discernimento do credor e
sua relevância para a fluência da prescrição e da decadência. 4.
Pretensão indenizatória do incapaz ou da pessoa com discern-
imento reduzido contra (eventual) representante legal pela inér-
cia em obstar ou arguir a prescrição. Síntese conclusiva. Refe-
rências.
INTRODUÇÃO: PRESCRIÇÃO, DISCERNIMENTO E AU-
TORRESPONSABILIDADE
Segundo entendimento clássico, o adágio latino vigilantibus,
non dormientibus, sucurrit ius traduz um dos mais antigos funda-
mentos atribuídos à prescrição extintiva: o papel de punir o titular
que se mantém inerte no exercício de uma situação jurídica subje-
tiva.1 Tão antigo é esse fundamento, aliás, que a doutrina contem-
porânea já tem posto em dúvida sua adequação. Seria, de fato, a
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1 Por todos, cf. DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago. Programa de direi-
to civil. Atualizado por Gustavo Tepedino et al. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
v.1. p.342.
inércia do titular a razão de ser da prescrição? Em caso afirmativo,
essa inércia seria sempre punível? Eminentes vozes já se insurgi-
ram, no direito brasileiro e alhures, contra essa concepção.2 Afir-
ma-se, por exemplo, que, fosse esse o real fundamento da prescri-
ção, o reconhecimento do crédito pelo devedor não poderia jamais
atuar como causa obstativa do prazo prescricional.3 Além disso, se-
gundo alguns autores, a regra de que a prescrição apenas se inter-
rompe uma vez seria incompatível com esse tradicional ponto de
vista.4
A suposta punição do credor inerte como fundamento da pres-
crição tem mais de uma possível explicação. A primeira e mais evi-
dente consiste no fato de o decurso do tempo parecer prejudicar o
titular do direito e beneficiar a parte contraposta na relação jurídi-
ca.5 A segunda, não menos relevante, é de ordem sistemática:
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2 Na doutrina italiana, aduz Monateri: “A teoria da inércia pressuporia um alcance
moralístico que parece estranho ao tratamento científico da matéria, mesmo porque,
se coerentemente assumida, ela reconduziria os efeitos da prescrição, de fato, entre as
sanções civis. Diversamente, tanto o campo da prescrição, quanto por outro lado aque-
le da decadência ou da nulidade em linguagem sancionatória (‘sob pena de decadên-
cia’, ‘sob pena de nulidade’), refletem agora posições em desuso, e só podem ser en-
tendidos como metáfora de efeitos que não são mais cientificamente considerados
como sanções”. (MONATERI, Pier Giuseppe. La prescrizione. In: SACCO, Rodolfo
(diretto da). Trattato di diritto civile: La Parte Generale del Diritto Civile. Torino:
UTET, 2009. v.5. p.28. Tradução livre). No direito brasileiro, registra Caio Mário da
Silva Pereira: “nosso direito pré-codificado via [na prescrição] uma punição ao credor
negligente, o que não é de boa juridicidade, pois que punível deve ser o comportamen-
to contraveniente à ordem constituída, e nada comete contra ela aquele que mais não
fez do que cruzar os braços contra os seus próprios interesses”. (PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de direito civil. Atualizado por Maria Celina Bodin de Moraes.
29.ed. Rio de Janeiro: GEN, 2016. v.1. p.572).
3 Com esse argumento, por exemplo, Pier Giuseppe Monateri afasta a tese de uma
suposta renúncia tácita pelo titular do direito como fundamento da prescrição. (MO-
NATERI, Pier Giuseppe. La prescrizione. In: SACCO, Rodolfo (diretto da). Trattato
di diritto civile: La Parte Generale del Diritto Civile. Torino: UTET, 2009. v.5. p.24).
4 Por todos, cf. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; LGOW, Carla Wainer Chal-
réo. Prescrição extintiva: questões controversas. Revista do Instituto do Direito Bra-
sileiro, v.3, n.3, p.1846, 2014.
5 “No campo do Direito privado, o interesse do credor será, sempre, o de dispor de
um máximo de pretensões, podendo ordenar no tempo, de acordo com conveniências
suas, o exercício dos seus direitos. Temos, pois, de assumir que a prescrição visa, no
essencial, tutelar o interesse do devedor: uma orientação que se comprova, em termos
históricos, desde Teodósio II”. (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito
civil. Coimbra: Almedina, 2015. v.5. p.197).
como se sabe, a questão central com que lida o direito civil consiste
no controle valorativo da autonomia privada. De fato, estando os
atos da vida civil sujeitos a um regime que presume a liberdade de
agir, mas a submete ao crivo axiológico do ordenamento (como in-
forma o princípio da legalidade em sua vertente privatista),6 colo-
ca-se para o jurista o problema de saber quando e de que modo cer-
tas condutas particulares receberão um tratamento repressivo,
desfavorável ao agente. Assim tem sido ao longo de séculos, e mes-
mo o atual ambiente de acentuada funcionalização da autonomia
privada à solidariedade constitucional não parece alterar essa preo-
cupação central.7 Resulta, assim, natural que também a prescrição
aparente decorrer da valoração negativa de um comportamento
particular (a inércia do titular de um direito) e da necessidade de
sancioná-lo.
Por outro lado, um aspecto (este sim) drasticamente modifica-
do com a progressiva constitucionalização do direito civil foi a pró-
pria noção de legalidade, cada vez mais voltada à ideia de mereci-
mento de tutela.8 Em um cenário de pluralidade de fontes norma-
tivas e crescente complexificação social, constata-se a insuficiência
da função repressiva do direito para a solução de conflitos particu-
lares.9 Nos casos, não mais tão raros, em que dois comportamentos
privados, em princípio amparados pelo direito, entram em rota de
colisão, impõe-se ao intérprete ponderar qual deles atende de
modo mais satisfatório a uma função promocional, para conferir-
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6 Sobre a evolução do princípio da legalidade em direção ao controle da abusividade
e do merecimento de tutela, cf. SOUZA, Eduardo Nunes. Merecimento de tutela: a
nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado, São Paulo,
v.15, n.58, p.75-107, abr./jun. 2014.
7 Sobre a referida funcionalização da autonomia privada ao princípio da solidarie-
dade social, cf. a lição de PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade consti-
tucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.341-342.
8 Sobre o sentido estrito de merecimento de tutela ora adotado, como instância de
controle positivo dos atos de autonomia privada, embasada na função promocional do
direito e na ponderação de interesses que não possam conviver em concreto, cf. SOU-
ZA, Eduardo Nunes. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito
civil. Revista de Direito Privado, São Paulo, v.15, n.58, p.75-107, abr./jun. 2014.
Itens 3-5.
9 Essencial neste ponto é a lição de BOBBIO, Norberto. A função promocional do
direito. In: Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Ma-
nole, 2007. p.15.

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