Proteção, liberdade e responsabilidade: uma interpretação axiológico-sistemática da (in)capacidade de agir e da instituição da curatela

AutorBruna Lima de Mendonça
Páginas31-66
Proteção, liberdade e responsabilidade: uma
interpretação axiológico-sistemática da
(in)capacidade de agir e da instituição curatela
Bruna Lima de Mendonça
Sumário: Introdução. 1. Comandos constitucionais 2. A hipótese
legal de restrição da capacidade de agir: proposta de uma cláusula
aberta. 3. A contribuição das novas diretrizes processuais. Conclu-
são. Referências.
INTRODUÇÃO
Há muito já se alertou para o fenômeno da proliferação de leis
especiais e extravagantes e da multiplicação das próprias fontes do
direito, de modo que a harmonização dessas fontes, a partir dos va-
lores e princípios constitucionais, é um dos maiores desafios a ser
enfrentado pelos juristas contemporâneos.1
Muitas dessas leis têm o mérito de levar em consideração as ne-
cessidades concretas dos destinatários de seus comandos. Nesse
sentido, pode-se enunciar como características comuns a esse tipo
de lei: a definição de objetivos concretos, a alteração radical na lin-
guagem empregada pelo legislador, a previsão de normas promo-
cionais, a disciplina de situações existenciais e o seu caráter contra-
tual, na medida em que, em geral, os grupos diretamente interes-
sados negociam e debatem a promulgação de suas leis.2
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1 TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção uni-
tária do ordenamento. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. Tomo
III. p.18.
2 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do
direito civil. In: Temas de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.8-10.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/15)3 – ou o Estatuto da Pessoa com Deficiência – faz parte
desse grupo de leis setoriais que têm em comum uma intervenção
do legislador focada na pessoa concretamente considerada.
Contudo, tamanho é o número de leis, que surge o grave risco
de fragmentação do sistema jurídico, que, “de um lado, passa a ser
guiado por valores de ocasião e, de outro, deixa sem qualquer res-
posta os inúmeros conflitos que atraem a aplicação simultânea de
estatutos diversos, inspirados, muitas vezes, em propósitos antagô-
nicos ou assimétricos”.4
Daí a importância de, diante da complexidade e diversidade de
fontes, defender-se a unidade do ordenamento jurídico, garantida
pelos valores constitucionais.5 São os valores e princípios constitu-
cionais que garantem a unidade interior e a adequação valorativa do
ordenamento.6
A normativa especial, portanto, não pode ser lida somente a
partir de seus próprios princípios, como se fosse um microssistema
isolado. Os seus preceitos setoriais estarão sempre condicionados,
vinculados e instrumentalizados ao projeto constitucional.7
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3 Neste artigo, denominada LBI.
4 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e Constituição. In: SCHREIBER, Ander-
son; KONDER, Carlos Nelson. Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.
p.11.
5 Como observa Maria Celina Bodin de Moraes, “são os valores expressos prelo le-
gislador constituinte que devem informar o sistema como um todo. Tais valores, ex-
traídos da cultura, isto é, da consciência social, do ideal ético, da noção de justiça pre-
sentes na sociedade, são, portanto, os valores através dos quais aquela comunidade se
organizou e se organiza. É neste sentido que se deve entender o real e mais profundo
significado, marcadamente axiológico, da chamada constitucionalização do direito ci-
vil”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa huma-
na. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p.73).
6 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do direito. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p.279-288.
7 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do
direito civil. In: Temas de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.15. Cf.,
também, Pietro Perlingieri: “A legalidade, portanto, não é somente o respeito da lei
mas, sobretudo no sistema constitucional, é exigência de reconstrução dos nexos entre
múltiplas fontes operantes no mesmo território, f ontes legi tima da pela Constituição e
que encontram composição na sua unidade axiológica”. (PERLINGIERI, Pietro. O di-
reito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p.308).
Nesse sentido, duas observações são necessárias: (i) a primeira,
é que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
da ONU8 e o seu Protocolo Facultativo gozam de status de normas
constitucionais; e (ii) a segunda, que, após a vigência da LBI, en-
trou em vigor o novo Código de Processo Civil (CPC/2015), insti-
tuído pela Lei nº 13.105/2015, publicada em 17 de março de 2015.
O CPC/2015 disciplina matéria atinente à curatela e revoga alguns
artigos do Código Civil – inclusive, artigos cuja redação havia sido
alterada pela LBI.
A partir dessa perspectiva axiológica-sistemática, pretende-se,
no presente artigo, examinar uma das principais dúvidas trazidas
pela LBI no ordenamento brasileiro: pode a pessoa com deficiência
sofrer restrição em sua capacidade de agir e ser submetidas à cura-
tela, por meio do processo de interdição?
1. COMANDOS CONSTITUCIONAIS
Para assegurar o respeito à igual dignidade e autonomia das pes-
soas com deficiência, a principal mudança introduzida no ordena-
mento jurídico brasileiro pela Convenção (art. 12) e pela LBI (arts.
6º e 84) é o reconhecimento da capacidade civil dessas pessoas em
igualdade de condição com as demais.
A LBI revogou quase todos os dispositivos do Código Civil que
previam a incapacidade absoluta (CC/2002, art. 3º), que agora se
restringe aos menores de 16 (dezesseis) anos, e alterou a redação
dos dispositivos atinentes aos relativamente incapazes (CC/2002,
art. 4º), nos quais agora se inserem as pessoas entre 16 (dezesseis)
e 18 (dezoito) anos; os ébrios habituais e viciados em tóxicos; os
pródigos; e as pessoas que, em caráter permanente ou transitório,
não possam exprimir a sua vontade – alterações estas que também
refletem nas pessoas que estão sujeitas à curatela (CC/2002, art.
1.767).
Ao excluírem as referências expressas às pessoas com deficiên-
cia nos referidos dispositivos, essas alterações têm sido objeto de
acaloradas críticas por parte da doutrina brasileira, sob o argumen-
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8 Neste artigo, denominada Convenção.

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