Os limites da discricionariedade técnica e as provas objetivas nos concursos públicos de ingresso nas carreiras jurídicas

AutorProf. Fábio Medina Osório
CargoProfessor de Direito Administrativo na PUC-RS
Páginas1-16

Professor de Direito Administrativo na PUC-RS. Promotor de Justiça em Porto Alegre-RS. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorando em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid.

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Introdução ao problema: noções iniciais sobre o papel dos juristas na construção do direito

A doutrina jurídica deve ocupar-se, cada vez mais, de problemas atuais e concretos, apontando soluções e críticas construtivas às decisões equivocadas, partam elas dos legisladores, dos juristas ou dos operadores jurídicos. Debates sobre questões inúteis ou de pouca relevância prática não deveriam ocupar o tempo dos juristas, embora não raro isso ocorra no meio acadêmico, em processos judiciais e no interior da Administração Pública1.

Há discussões teóricas que se revelam adequadas, é certo, porém um olhar mais atento revelará, por igual, que essas mesmas discussões acabam esgotando-se no plano estritamente teórico, sem uma abordagem realmente transformadora e progressista2. Page 2

Um debate que pretendemos resgatar do plano teórico ao pragmático diz respeito aos limites da chamada discricionariedade administrativa. Soa bem, e é bonito, efetuar distinções e apontar limites teóricos à discricionariedade dos administradores públicos, até porque se trata de assunto fascinante. Não podemos, no entanto, ficar presos a um debate puramente teórico e distante da realidade dos Tribunais e da Administração Pública. Necessário, em realidade, aprofundar o exame da questão por ângulos distintos, percorrendo o direito dos juristas, não apenas as boas fontes doutrinárias, mas também as decisões dos Tribunais, verificando e observando a aplicabilidade prática dos limites teóricos à discricionariedade administrativa.

Cabe dizer, num momento inicial, que a distinção entre atos vinculados e discricionários costuma ocupar a atenção dos juristas, pois se trata de tema de alta relevância. É voz corrente dizer que "nenhum ato é totalmente discricionário, dado que, conforme afirma a doutrina prevalente, será sempre vinculado com relação ao fim e à competência, pelo menos. Com efeito, a lei sempre indica, de modo objetivo, quem é competente com relação à prática do ato - e aí haveria inevitavelmente vinculação. Do mesmo modo, a finalidade do ato é sempre e obrigatoriamente um interesse público, donde afirmarem os doutrinadores que existe vinculação também com relação a este aspecto"3.

De qualquer sorte, seguindo as lições de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, é pacífico dizer que "discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal, e pode ser definida como a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este o cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal. Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente, o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em conseqüência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente (...). Em rigor, não há, realmente, ato algum que possa ser designado, com propriedade, como ato discricionário, pois nunca o administrador desfruta de liberdade total. O que há é exercício de juízo discricionário quanto à ocorrência ou não de certas situações que justificam ou não certos comportamentos e opções discricionárias quanto ao comportamento mais indicado para dar cumprimento ao interesse público in concreto, dentro dos limites em que a lei faculta a emissão deste juízo ou desta opção"4. Page 3

Problema que merece a atenção da doutrina diz respeito aos limites dos administradores responsáveis pela elaboração de provas objetivas nos concursos públicos5. Sabemos que a tendência do Poder Judiciário é reconhecer campos largos de imunidade aos administradores que elaboram provas de ingresso às carreiras jurídicas, talvez até mesmo porque o próprio Judiciário - e, diga-se de passagem, também o Ministério Público, instituição fiscalizadora por excelência - realiza numerosos concursos públicos, não se revelando interessante propiciar abertura aos Juízes de primeiro grau no sentido de que pudessem efetuar controles mais rigorosos, fiscalizando atos de uma Banca Examinadora composta por autoridades superiores no plano administrativo6. Desta forma, os Tribunais teriam uma forte motivação psicológica e institucional para construir uma jurisprudência de imunidade em favor de seus próprios atos administrativos.

Sem embargo, necessário refletir sobre a correção desse comportamento jurisdicional restritivo, porque uma das funções da doutrina é, precisamente, a crítica à jurisprudência, de tal modo que se possam corrigir os rumos equivocados, construindo-se novos paradigmas jurídicos. A crítica científica é fonte de evolução do Direito construído pelos Tribunais e Legisladores.

Diga-se, ademais, que os Tribunais - não apenas os Legisladores e Administradores Públicos - têm a oportunidade de corrigir seus próprios equívocos, mesmo porque há motivações que, em realidade, são inconscientes, ou então não se revelam, pura e simplesmente, respaldadas na ordem jurídica, de tal sorte que restam ilegítimas. De um modo ou de outro, os Page 4 equívocos sempre podem ser corrigidos, com boa vontade e boas intenções, com espírito de lealdade institucional e de cumprimento dos comandos normativos emanados da Constituição Federal de 1988 (CF), em especial os princípios que presidem a Administração Pública brasileira (art. 37, caput, CF).

O equívoco jurisprudencial: da discricionariedade à arbitrariedade das bancas examinadoras

Quando se examinam de perto as decisões judiciais, observa-se que os Tribunais têm consagrado um caminho perigoso e temerário aos administradores públicos, outorgando-lhes um passaporte que vai da discricionariedade à arbitrariedade administrativa. Esse trajeto - da discricionariedade à arbitrariedade - tem permanecido, na maior parte das vezes, imune aos controles, facilitando-se as flagrantes injustiças e distorções, com perspectivas, inclusive, de responsabilidade patrimonial do Estado por injustiças e erros manifestos, sem falar no péssimo exemplo de má conduta administrativa, dando-se ares de legitimidade a comportamentos ilícitos.

Confiram-se, a título de exemplo, os seguintes julgados com orientação restritiva em matéria de controle da discricionariedade das Bancas Examinadoras nos concursos públicos:

"33154393 - ADMINISTRATIVO - CONCURSO PÚBLICO - CRITÉRIO DE CORREÇÃO DE PROVA - ALTERAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO - ILEGALIDADE - 1. É defeso ao judiciário alterar os critérios estabelecidos por Comissão Examinadora de Concurso Público para correção de provas. 2. Apenas ilegalidade praticada pela Comissão Examinadora enseja revisão do ato pelo Judiciário. 3. Sentença denegatória mantida. 4. Apelação improvida" (TRF 1ª R. - AMS 199401231915 - DF - 2ª T. - Relª Juíza Conv. Solange Salgado - DJU 11.06.2001 - p. 111).

"17000916 - CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGO PÚBLICO - CRITÉRIO DE CORREÇÃO DE PROVAS - REEXAME - IMPOSSIBILIDADE - MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DO DESEMBARGADOR CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA - Mandado de Segurança. Concurso público. Alegação de equívoco de banca examinadora na adoção de critérios corretivos. Preliminar de falta de interesse de agir que se repele, quando os pontos, cuja atribuição é pelo impetrante pretendida, embora não lhe pudessem garantir classificação, dentro do número de vagas oferecidas, seriam nada obstante, suficientes para lhe assegurar aprovação no certame. Descabimento da impetração que busca a reapreciação, pelo Poder Judiciário, dos critérios, adotados pela banca, para a correção de provas, com desconsideração do princípio constitucional da isonomia que assegura a todos tratamento igualitário. Segurança denegada" (MGS) (TJRJ - MS 487/97 - Reg. 070498 - Cód. 97.004.00487 - O.Esp. - Relª Juíza Áurea Pimentel Pereira - J. 09.02.1998). Page 5

"17004465 - CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGO PÚBLICO - CRITÉRIO DE CORREÇÃO DE PROVAS - REEXAME - IMPOSSIBILIDADE - Concurso público. Critério de Correção da Prova. Reexame pelo Judiciário. Impossibilidade. São reservados à banca examinadora do concurso os critérios de correção da prova, que os aplica uniformemente a todos os concorrentes, vedado ao Judiciário substituir-se aos examinadores para atribuir nota a este ou aquele candidato. Também aqui a atuação da Justiça se limita ao aspecto da legalidade formal e material do concurso, não lhe sendo lícito arvorar-se em examinador dos examinadores. Desprovimento do recurso" (TJRJ - AC 1701/97 - Reg. 120897 - Cód. 97.001.01701 - RJ - 2ª C.Cív. - Rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho - J. 27.05.1997).

"17004502 - CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGO PÚBLICO - CRITÉRIO DE CORREÇÃO DE PROVAS - REEXAME DA PROVA - IMPOSSIBILIDADE - Concurso público. Reexame de questões de prova. Inadmissibilidade. Ao Judiciário somente é permissível a apreciação da legalidade ou ilegalidade do ato administrativo. Inadmíssivel, por indevido, o exame subjetivo do acerto ou não da formulação das questões...

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