Dissolução parcial de sociedade anónima

AutorCristiano Gomes de Brito
Páginas147-159

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1. Introdução

Um dos temas que mais têm merecido debates no direito societário é a possibilidade ou não de se aplicar às sociedades anónimas o instituto da dissolução parcial1.

A elaboração deste tipo de dissolução surgiu de trabalho jurisprudencial antigo, como forma de se preservarem as empresas,2 evitando a dissolução total nos casos de quebra da affectio societatis, pois as Leis de Sociedade Anónima e por Quotas de Responsabilidade Limitada e o Código Comercial não contemplavam - como ainda não contemplam - a dissolução parcial de sociedade.3

A aplicabilidade da dissolução parcial nas companhias é bem recente, por isso causou espanto e controvérsias tanto na doutrina como na jurisprudência, que se vêm manifestando de forma antagónica, ora admitindo, ora negando sua aplicabilidade. Exemplo deste descompasso, como se verá mais adiante, é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, onde a 3§ 4 e a45 Turmas têm entendimentos divergentes.

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O escopo do presente trabalho é contribuir para os debates, encaminhando solução para as controvérsias geradas pela matéria, visando a uma futura solução para o tema apresentado.

2. Características das sociedades anónima e por quotas de responsabilidade limitada

Dentre as várias classificações possíveis, as sociedades podem ser agrupadas, quanto ao seu ato constitutivo, como institucionais e contratuais.

Nas institucionais - exemplo clássico são as anónimas - as relações e os vínculos entre os sócios não são regidos pelos princípios do direito contratual. Seus atos constitutivos são uma deliberação dos fundadores, manifestada em assembléia-geral ou escritura pública, fundando uma instituição à qual os futuros acionistas subscritores irão aderir, sem nada contratarem entre si.

Sua criação e funcionamento dependem do cumprimento de regras estritas emanadas da lei e dos estatutos, restringindo-se o consentimento dos acionistas à aceitação de uma disciplina legal e estatutaria-mente imposta. Para Wille Duarte Costa6 a ideia de instituição é a de organização social permanente e com equilíbrio de forças, um autêntico estado de direito que não se subordina à execução de qualquer ato por um de seus membros.

Já, nas contratuais as relações entre os sócios são constituídas por um contrato, um ajuste de suas vontades, que estão sob a regência dos princípios do direito contratual. Maior exemplo deste tipo é a sociedade por quotas de responsabilidade limitada.

Este contrato harmoniza a concorrência dos interesses particulares e a reciprocidade dos deveres de cada sócio, com o ob-jetivo comum de realização do objeto social, por meio do exercício de uma ativida-de empresarial. Por isso, o contrato da sociedade por quotas de responsabilidade limitada é simultaneamente sinalagmático e plurilateral, na clássica concepção de Tullio Ascarelli. Caracteriza-se, assim, por estar aberto à adesão de novas partes e imune ao inadimplemento unilateral ou à saída dos contratantes originais - fatos que não comprometem a vigência e validade do pacto.

As sociedades podem também ser classificadas como de pessoas e de capitais, utilizando-se como critério a maior ou menor relevância atribuída à pessoa dos sócios na origem associativa.

Há organizações societárias nas quais os caracteres individuais e súbjetivos de cada sócio -v.g., reputação, capacidade de administração - constituem fator determinante para a vinculação aos demais sócios e fundamento da própria existência do empreendimento. Esse grupo classifica-se como de pessoas, sendo exemplo as sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Sua criação e seu funcionamento decorrem do intuitu personae - isto é, os sócios criam e dirigem a empresa, em razão do recíproco conhecimento e da mútua confiança. Por isso mesmo há restrições quanto à cessibilidade das quotas a estranhos, enquanto a morte, interdição ou falência de um dos sócios podem acarretar sua dissolução.7

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Do outro lado estão as sociedades cujo fator determinante de criação é a contribuição pecuniária dos participantes. Essas são conhecidas como de capital - v.g., as companhias -, importando apenas a contribuição para o capital social, não se levando em conta qualquer consideração de ordem pessoal em relação ao sócio. Daí a livre cessibi-lidade das ações e a total desconsideração da morte, interdição ou falência do sócio.

3. Considerações sobre a dissolução parcial nas sociedades limitadas

O Código Comercial Brasileiro de 1850, de feição romanística, editado no auge da visão liberal e individualista então em voga, adotou a doutrina contratualista (arts. 335 e 336) para reger os casos e as formas de dissolução das sociedades, preocupando-se com a pessoa do sócio em detrimento da sociedade, tutelando a liberação daquele mediante o sacrifício desta. Tanto é assim que, nas causas elencadas como ensejadoras de dissolução da sociedade, o Código refere-se tão-somente às peculiaridades pessoais dos sócios,8 não levando em conta os interesses da empresa.

Esta ênfase individualista no direito mercantil brasileiro do século XIX - explica Celso Barbi Filho9 - vem da parcial influência que lhe imprimiu o Código Francês de 1807, criticado pelos próprios franceses como uma lei "medíocre que se ressentia de certa animosidade de Napoleão com respeito aos comerciantes, devido às falências estrondosas de alguns e às especulações de outros no abastecimento do Exército".

Com uma visão moderna, Cesare Vi-vante,10 no começo do século XX, esboçou a teoria da preservação da empresa. Essa teoria veio ao encontro das novas realidades económicas das empresas, pois estas, com o passar dos tempos, tornaram-se a alavanca do desenvolvimento económico de seus países.

Nesse contexto, a doutrina individualista, que imperava no início do século, começou a ser substituída pela escola institucional. Em pouco tempo a doutrina contratualista não resistiu à realidade e aos interesses económicos que envolviam as empresas.

Assim, tendo em vista o princípio da preservação da empresa, a dissolução parcial de sociedade foi concebida pela jurisprudência, que passou a considerar a sociedade pela sua função social; ao invés de dissolvê-la totalmente, passou-se a admitir sua dissolução parcial, equacionando, com isso, os interesses tanto da empresa como dos sócios retirantes e dos remanescentes.11

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A dissolução parcial tem como escopo impedir a dissolução total da empresa, ou seja, sua extinção, quando se torna incabível o direito de recesso, permitindo ao ordenamento vigente, que regula a dissolução das sociedades, nova exegese, possibilitando a dissolução parcial, em harmonia com os princípios do direito societário e a função social da empresa.

Nesta dissolução os sócios não precisam alegar qualquer das hipóteses que constam em lei,12 em rol taxativo, como premissa para o exercício desse direito. Para Mauro Rodrigues Penteado13 basta que a sociedade seja por prazo indeterminado, ou que o prazo de duração seja longo e tenha seu termo final ainda muito distante, e que o sócio alegue desinteligência ou quebra da affectio societatis.

Desta forma, nos casos em que a lei prevê a dissolução total da empresa aplica-se o instituto da dissolução parcial, retirando-se da sociedade somente o sócio dissidente, com apuração e pagamento de seus haveres, preservando-a com os sócios remanescentes. Assim, mantém-se a estrutura da sociedade geradora de riquezas, emprego e receita, conservando o desenvolvimento local.

Vale dizer que, ocorrendo a dissolução parcial, o principal efeito é a retirada do sócio mediante apuração de seus haveres, em valor real atualizado, na forma de liquidação que se aproxime da dissolução total, não se sujeitando ao pagamento parcelado dos haveres.

4. Dissolução parcial de sociedade anónima

Como visto anteriormente, a dissolução parcial tem como escopo o princípio da preservação da empresa nos casos em que há desinteligência entre sócios. Esse princípio não foi adotado na antiga Lei das S/A (Decreto-lei 2.627/1940), mas a Lei 6.404/1976, segundo Modesto Carvalhosa, adotou expressamente os princípios da prevalência da função sócio-econômica e comunitária da companhia no art. 116 e o da preservação da empresa no art. 117.14

A dissolução parcial de sociedade anónima foi importada das sociedades limitadas com o objetivo de se preservar a companhia. Na prática, ela ocorre quando um acionista retira-se da sociedade, com a apuração de haveres, sem que se trate de direito de recesso.

Este tipo de dissolução tem sido empregado nas sociedades anónimas em que há elevado grau de iliquidez das ações, impedimento da circulação das ações, capital fechado, pequeno número de acionis-tas, falta de poder deliberativo das ações e, ainda, quando há o rompimento da affectio societatis.

Esse conjunto de circunstâncias, principalmente a quebra da affectio societatis, poderia acarretar autêntico congelamento do capital investido pelo acionista, em face da absoluta iliquidez das ações, a justificar a dissolução parcial da companhia como alternativa de tutelar os interesses da minoria, dentro da construção elaborada para as sociedades limitadas.

Como se demonstrará a seguir, esca-lonadamente, tal instituto não poderá ser utilizado nas sociedades anónimas, haja vista que violará disposição literal de lei, criará nova modalidade de direito de recesso, possibilitará a exclusão de acionista, bem como causará instabilidade nas relações de poder nas companhias. Ademais, tais circunstâncias não ensejariam pedido de dissolução da sociedade, previsto estritamente no art. 206 da Lei das S/A.

I - O primeiro impedimento quanto à adoção deste instituto nas sociedades anónimas é a ausência de affectio societatis

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