Do Acesso à Terra (art. 27 ao art. 34)

AutorRafael Calil Tannus
Páginas193-211

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Art. 27. O poder público elaborará e implementará políticas públicas capazes de promover o acesso da população negra à terra e às atividades produtivas no campo.

Art. 28. Para incentivar o desenvolvimento das atividades produtivas da população negra no campo, o poder público promoverá ações para viabilizar e ampliar o seu acesso ao financiamento agrícola.

Art. 29. Serão assegurados à população negra a assistência técnica rural, a simplificação do acesso ao crédito agrícola e o fortalecimento da infraestrutura de logística para a comercialização da produção.

Art. 30. O poder público promoverá a educação e a orientação profissional agrícola para os trabalhadores negros e as comunidades negras rurais.

Art. 31. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Art. 32. O Poder Executivo federal elaborará e desenvolverá políticas públicas especiais voltadas para o desenvolvimento sustentável dos remanescentes das comunidades dos quilombos, respeitando as tradições de proteção ambiental das comunidades.

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Art. 33. Para fins de política agrícola, os remanescentes das comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento especial diferenciado, assistência técnica e linhas especiais de financiamento público, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infraestrutura.

Art. 34. Os remanescentes das comunidades dos quilombos se beneficiarão de todas as iniciativas previstas nesta e em outras leis para a promoção da igualdade étnica.

COMENTÁRIOS

1 Estatuto da Igualdade Racial, ações afirmativas e políticas públicas de acesso à terra e à moradia adequada

O Estatuto da Igualdade Racial, objetivando a efetivação de oportunidades e melhores condições para a população negra, disciplina, no presente capítulo, o acesso à terra e à moradia adequada. Os artigos a serem analisados apontam políticas públicas e ações afirmativas, termos que, embora já definidos pela própria lei (artigo 1º, parágrafo único), demandam algumas considerações no presente contexto.

A igualdade de todos perante a lei, conhecida como igualdade formal e proclamada desde a Revolução Francesa1, não pode ser desprezada, mas ela não se realiza se não forem dadas condições efetivas para seu exercício (igualdade material). Em outras palavras, ao lado da imprescindível igualdade formal, deve haver o efetivo exercício de direitos e o acesso a bens essenciais.

Portanto, a construção da igualdade pressupõe duas esferas de atuação do Estado: uma que cria barreiras penais, civis ou administrativas à discriminação e pune o preconceito (igualdade formal); e outra que visa criar condições mínimas de acesso aos bens, serviços e direitos sociais (igualdade material)2.

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A Constituição de 1988 dá grande importância ao princípio da igualdade. Ela consagra a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), com o objetivo fundamental de reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (artigo 3º, incisos III e IV). O princípio da igualdade está expressamente previsto no caput do artigo 5º da Constituição.

Assim, a igualdade elencada na Constituição não é apenas formal. Representa não apenas um limite, mas uma verdadeira meta para o Estado, que deve agir para promovê-la, buscando a redução das desigualdades.

Nesse contexto, surgem as ações afirmativas ou políticas de discriminação positiva, que são "medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável e que sejam vítimas de discriminação e de estigma social"3.

Daniel Sarmento4aponta quatro fundamentos para justificar as medidas de ação afirmativa: justiça compensatória, justiça distributiva, promoção do pluralismo e fortalecimento da identidade do grupo que esteja em situação desfavorável. Analisando a aplicação desses argumentos em relação à população negra brasileira, o autor refere que, pela justiça compensatória, a sociedade atual deve compensar a população negra pelas injustiças sofridas no passado e, sobretudo, pelos efeitos dessas injustiças, que continuam presentes atualmente. O fundamento da justiça distributiva, de maior peso, sustenta que a constatação empírica da situação atual de desvantagem dos negros justifica a adoção de medidas de favorecimento perante os brancos para distribuir melhor os bens socialmente relevantes. O argumento do pluralismo defende a existência de contato real entre integrantes

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de diferentes etnias, possibilitando convivência pessoal e profissional das pessoas em igualdade de condições, a fim de permitir, inclusive, troca de experiências e cultura. Por último, o argumento do fortalecimento da identidade da população negra implica que a ação afirmativa não se relaciona com a justiça apenas no campo da distribuição, mas com a justiça na esfera do reconhecimento, quebrando estereótipos negativos.

A igualdade que deve ser promovida pelo Estado brasileiro engloba também a igualdade racial, exigindo, assim, ações afirmativas em favor da população negra.

As políticas de ação afirmativa em favor da população negra, segundo Daniel Sarmento, são compatíveis com a Constituição. Contudo, referido autor5aponta três limites constitucionais materiais a que se sujeitam tais medidas:

  1. as políticas de ações afirmativas não podem ser impostas aos seus beneficiários contra a vontade deles;

  2. devem ser temporárias;

  3. devem estar de acordo com o princípio da proporcionalidade.

Assim, de acordo com o primeiro limite, as ações afirmativas não podem implicar ajuda forçada a quem não queira, seja por acreditar que não precisa, seja por se sentir diminuído com a medida. Já o segundo limite mencionado aduz necessidade de delimitação temporal das ações afirmativas, que devem cessar quando não estiverem mais presentes as razões de sua criação. A aplicação do princípio da proporcionalidade, para o autor, é o limite mais complexo, pois envolve aplicação de três subprincípios, assim enunciados pela doutrina6: adequação, que exige que a medida seja apta a atingir o objetivo pretendido; necessidade,

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que significa inexistência de meio menos gravoso para atingir a finali-dade; proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido.

Notamos, com isso, que a preocupação em promover a igualdade racial, por meio de ações afirmativas, decorre do princípio da igualdade previsto na Constituição. Embora essas medidas pudessem ser implementadas diretamente, com fundamento no próprio Texto Constitucional, as ações ainda se mostravam tímidas, esparsas e, de maneira geral, insuficientes. Agora, com o Estatuto da Igualdade Racial, a atuação estatal poderá ser mais direcionada, pois as ações afirmativas e políticas públicas voltadas para a população negra passam a ser tratadas em lei, especificando medidas para acesso da população negra à terra e à moradia, como veremos a seguir.

2 Do acesso à terra e às atividades produtivas no campo

O Estatuto da Igualdade Racial incumbiu ao poder público a elaboração e implementação de políticas públicas para promover acesso da população negra à terra e às atividades produtivas no campo (artigo 27). A análise do dispositivo é feita com base em considerações acerca da política agrícola prevista na Constituição e da legislação infraconstitucional existente. Aliás, a sistemática adotada nesse estudo partirá sempre da análise a partir da Constituição, pois suas normas compõem o sistema que dá fundamento a todo o ordenamento jurídico. Assim, mesmo que se trate de atribuir sentido a uma norma da legislação ordinária, o estudo deve partir de elementos contidos na Constituição7.

O artigo 187 da Constituição dispõe que a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, levando em conta os elementos especificados em seus incisos. Ainda, determina que serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária (artigo 187, § 2º) e que a destinação de terras públicas e

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devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188, caput). Notamos que a Constituição traça linhas gerais destinadas à política agrícola, como, aliás, se espera do instrumento que é dotado do mais elevado grau dentro do ordenamento. Cabe à legislação infraconstitucional minudenciar os detalhes da polícia agrícola, ocupação da terra e utilização, observados esses ditames constitucionais.

Atualmente, a legislação sobre Terras, no Brasil, é constituída por dois diplomas principais, sem exclusão de outras leis e regulamentos: a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), e a Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que trata da reforma agrária. Importante notar que o Estatuto da Terra surgiu no contexto da ditadura militar. Em 10 de novembro de 1964, a Emenda Constitucional nº 10 incluiu, entre as competências privativas da União, legislar sobre direito agrário. A Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, passou a tratar de vários aspectos do direito agrário, mostrando interesse do regime militar no tema8. Apesar do contexto em que foi elaborado, o Estatuto da Terra continua em vigor e foi recepcionado pela Constituição de 19889.

O Estatuto da Terra procurou criar uma medida de área que pudesse representar...

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