A Justiça do Trabalho como Vetor da Justiça Social

AutorValéria Marques Lobo
Páginas437-449

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I

Por essas palavras, Mauricio Godinho Delgado define o caráter civilizatório e democrático do Direito do Trabalho, cuja presença, qualidade e extensão constituem importantes indicadores do patamar de cidadania e bem estar alcançado por uma determinada sociedade. Ao introduzir dispositivos de proteção ao "economicamente desfavorecido", o Direito do Trabalho, nos termos de Luiz Werneck Vianna, "infiltrou no campo do direito um argumento de justiça", emprestando ao direito privado clássico "um novo significado, pondo-o também a serviço da justiça social"1. No caso brasileiro, a Justiça do Trabalho é a instituição destinada a assegurar aos trabalhadores a fruição de direitos sempre que os empregadores evadem-se da lei. Tendo em vista que essa postura é comum e frequente nos meios empresariais brasileiros, o judiciário trabalhista ganha proeminência, assumindo um papel de relevo na promoção da justiça social e do caráter civilizatório e democrático do capitalismo no país. É sobre essa instituição que pretendo discutir neste capítulo.

A Justiça do Trabalho foi instituída no Brasil por meio da legislação trabalhista fixada no país durante o Primeiro Governo Vargas. O objetivo do governo ao regulamentar o direito do trabalho e estabelecer uma instituição destinada a intermediar as relações de trabalho era promover colaboração de classes e, por conseguinte, a paz social considerada necessária ao desenvolvimento urbano e industrial do país. Essa intenção é nítida em diversos pronunciamentos de Vargas, a exemplo do que se segue:

o melhor meio de garanti-lo [o capital] está, justamente, em transformar o proletariado numa força orgânica de cooperação com o Estado, e não o deixar, pelo abandono da lei, entregue à ação dissolvente de elementos perturbadores.2

Tal objetivo, ilustrado pelo discurso acima, é reconhecido pela quase totalidade da literatura referente ao tema. Contudo, se há consenso nas abordagens acerca do período quanto às razões que motivaram o Governo Vargas a criar um ministério do trabalho, uma legislação trabalhista extremamente detalhada e uma instituição destinada a mediar as relações de trabalho, transferindo o conflito de classes da esfera do mercado para o âmbito do Estado, o mesmo não se pode afirmar em relação aos efeitos que essas medidas efetivamente produziram sobre os trabalhadores e as relações industriais ao longo da história. No caso específico da Justiça do Trabalho, pouco se sabe acerca do papel desempenhado ao longo de sua trajetória por essa que é uma das mais longevas e sólidas instituições do país. Embora a história do judiciário trabalhista venha despertando o interesse dos historiadores nos últimos anos, há ainda muitas indagações acerca de aspectos diversos que envolvem a história da Justiça do Trabalho no país.

Visando a contribuir para elucidar a história do judiciário trabalhista no Brasil, este capítulo traz o resultado de um estudo

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de caso que investigou o comportamento junto à Justiça do Trabalho de trabalhadores têxteis e metalúrgicos no município de Juiz de Fora, entre as décadas de 1940 e 1960. O objetivo da pesquisa consistiu em relacionar as diferenças que se observam nas ações dessas duas categorias junto à Justiça do Trabalho com a situação da indústria têxtil e metalúrgica no município durante o período indicado. A hipótese que orientou a investigação é que as particularidades de cada ramo industrial se refletem nas relações de trabalho e que as características que marcam as relações de trabalho em cada um dos ramos repercutem nas demandas que os trabalhadores de ambas as categorias encaminham à Justiça do Trabalho.

O texto divide-se em duas partes. Inicialmente, analisa-se a história da Justiça do Trabalho no país, no intuito de compreender certas peculiaridades da instituição. As fontes que subsidiaram tal abordagem são, sobretudo, bibliográficas. Em seguida, procede-se a uma análise quantitativa do uso da Justiça do Trabalho pelas categorias mencionadas, na tentativa de compreender se e em que medida as especificidades de cada ramo se refletem no uso que os trabalhadores das distintas categorias fazem do judiciário trabalhista. A pesquisa que deu origem a esta análise apoiou-se em um grande volume de processos trabalhistas que comportam ações impetradas à Junta de Conciliação e Julgamento de Juiz de Fora, posteriormente Vara do Trabalho, durante o período compreendido entre a instalação da Junta no município, em 1944, e o Golpe de 1964.

II

A implantação da Justiça do Trabalho no Brasil ocorre em meio ao processo de fixação da legislação sindical e trabalhista, durante o primeiro governo Vargas3. Não obstante ter sido efetivamente instalada apenas em 1941, a criação de um organismo dessa natureza já constava da pauta e dos debates constituintes de 1934, dois anos após a implantação das Juntas de Conciliação e Julgamento, e figurava na Carta de 1937, quando foram introduzidos "mecanismos de enrijecimento da estrutura sindical e de seu controle, como a unicidade, o imposto compulsório, o enquadramento sindical"4.

Nos primeiros anos, a instituição esteve vinculada ao poder executivo, via Ministério do Trabalho. Elina Pessanha e

Regina Morel destacam que, nesse período, sua estrutura era composta pelas Juntas de Conciliação e Julgamento, na base; pelos Conselhos Regionais do Trabalho, no nível intermediário; e pelo Conselho Nacional do Trabalho, no topo. As instâncias tinham composição tripartite, contando, além dos profissionais com formação em Direito, com representações patronais e dos empregados.

Em 1946, a Justiça do Trabalho passou à órbita do Judiciário, adquirindo autonomia em relação ao Executivo, "competência específica, poder normativo e Ministério Público correspondente junto ao Ministério Público da União"5. Na

Constituição de 1946, os organismos da primeira instância receberam a denominação de Varas do Trabalho, à segunda instância passaram a corresponder os Tribunais Regionais do Trabalho e à ultima o Tribunal Superior do Trabalho.

Desde então, ainda de acordo com Pessanha e Morel, a carreira de juiz de trabalho obedece ao modelo geral de carreira da magistratura, embora a Justiça do Trabalho permanecesse ainda por muito tempo guardando certas peculiaridades e seus magistrados tivessem que esperar ainda algumas décadas para obter isonomia de salários e direitos em relação aos demais magistrados6.

Entre as particularidades do judiciário trabalhista Pessanha e Morel destacam a gratuidade, a dispensa de advogados, a oralidade e uma maior informalidade dos atos processuais7. De sua parte, Fernando Teixeira da Silva observa, por exemplo, que "o mobiliário e o arranjo espacial das salas de audiência compõem um quadro em tudo diferente da justiça comum", muito mais simples que os demais tribunais8.

No que se refere aos magistrados, Ângela de Castro Gomes identifica nos anos 1980 um marco no sentido do aumento de seu prestígio, reflexo, em boa medida, da valorização dos direitos sociais e do trabalho impressa, inclusive, na Constituição de 19889. A partir daí, a Justiça do Trabalho e seus magistrados transformam-se, do ponto de vista dos setores progressistas da sociedade brasileira, em vetores da Justiça social.

Para os trabalhadores, a Justiça do Trabalho parece ter sido instituição extremamente valorizada desde o início. Em que pesem as críticas de setores organizados a determinados dispositivos do judiciário trabalhista, tais como a competência normativa e a representação classista, desde a instalação das

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Juntas de Conciliação e Julgamento, trabalhadores e sindicatos recorreram com frequência cada vez maior aos tribunais trabalhistas para tornar efetivos direitos inscritos em lei. Nesse ponto, é importante salientar que a Justiça do Trabalho jamais chegou a constituir um campo magnético que ao mesmo tempo em que atraia os trabalhadores os afastava de outras arenas de combate. Se durante o Regime Militar a Justiça do Trabalho restou como única instância à qual os trabalhadores podiam recorrer para defender seus direitos, em sistemas políticos abertos a instituição representou apenas uma das frentes onde se travava a batalha entre Capital e Trabalho, mais do que uma alternativa à luta direta, distanciando-se das expectativas que informaram o projeto que engendrou a Justiça do Trabalho10.

Inspirado pelos princípios do corporativismo estatal, tal projeto, reitero, visava conduzir para a esfera da burocracia de Estado o conflito de classes, transformando os organismos de intermediação de interesses em entidades oficiais. De sua parte, a Justiça do Trabalho seria a instância destinada a dirimir os conflitos sempre que ocorressem litígios, individuais ou coletivos, no mundo do trabalho. Buscava-se, com isto, mitigar a manifestação extra-institucional da luta de classes, favorecendo, assim, o controle do Estado sobre os trabalhadores, suas lideranças e sindicatos11.

Tendo em vista seu papel de dirimir os conflitos decorrentes das relações entre empregadores e empregados, que esses possuem motivações variadas e que a legislação destinada a regular as relações de trabalho é vasta e minuciosa, a Justiça do Trabalho funcionaria como um catalisador, atraindo celeremente o conflito para o seu interior. Tal função foi desempenhada com propriedade pelo judiciário trabalhista, o que pode ser atestado pelo crescimento exponencial de demandas encaminhadas à Justiça do Trabalho desde sua fixação. No entanto, cumpre reiterar, sua presença não chegou a inibir a manifestação do conflito em outras searas12. Neste sentido, 1953 é um ano emblemático. Um contraste entre os indicadores de atividade grevista no Brasil e de registros de processos trabalhistas revela que ambos foram extremamente elevados naquele ano. O que se observa é, pois, que ao mesmo tempo em que os sindicatos estimulam os trabalhadores a reclamarem direitos na Justiça, buscam mobilizar a categoria para greves e...

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