Intervenção do Estado no domínio econômico: síntese econômica, filosófica e jurídica e perspectivas para a economia globalizada

AutorAdyr Garcia Ferreira Netto; Lourival José de Oliveira
Páginas9-22

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1 Introdução

Para discorrer sobre o direito1 na conjuntura multifacetada e policêntrica da realidade social, imersa sob a pressão das diversas forças que o mercadoPage 10 globalizado impõe as tradicionais formas de praticar políticas públicas, faz-se necessária a precaução de não limitá-lo ao pressuposto consagrado pelo uso comum do termo, de que se trata apenas de um conjunto delimitado de leis que garante a organização de uma sociedade específica.

A própria Constituição em seu dispositivo preambular, anuncia a instituição de um Estado que assegure a harmonia social comprometida com a ordem interna e internacional sob os valores da justiça. No entanto, a dificuldade de tratar o direito como um instrumento dinâmico que acompanha a dialética do processo cultural e evolutivo das sociedades complexas, a fim de realizar efetivamente os seus objetivos, consiste em desvanecer a essência paradigmática de pressupostos ideológicos, criada pela idéia de que o direito está meramente limitado na pura expressão da ordem legislativa estatal, e assim enrijecido a uma realidade estritamente jurídica.

Evidente que na prática e, em tempos de globalização, por questões de princípios como legitimidade, segurança jurídica, legalidade, territorialidade, autoridade e outros, a idéia de direito não pode se relativizar a ponto de perder sua identidade com seu povo, sua soberania e o poder do Estado.

No entanto, a rigidez conceitual que reduz a justiça apenas ao seu aspecto normativo, pode ao aprisionar os princípios do direito nos limites lingüísticos da lei positiva, envelhecê-los, tornando-os pouco eficazes e desatualizados com as necessidades que o dinamismo social alimenta e renova as relações intersubjetivas que requerem tutela judicial2. Como entende Roberto Lyra Filho (2001, p. 85), as normas são meios de expressão do direito móvel, em constante progresso, e não direito em si.

Desta forma, a idéia de intervenção do Estado no domínio econômico (forma do direito interferir na esfera econômica), também exige análise que transcende o paradigma axiomático do qual sempre se projetou o pensamento de uma realidade jurídica autônoma e exclusivista. Para tanto, se propõe neste artigo uma visão de natureza axiológica, entendendo a intervenção do Estado não apenas como uma previsão legal, mas como resultado da evolução do pensamento e da história partindo de uma realidade plural e multidisciplinar.

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2 Fundamentos da intervenção do Estado no domínio econômico – elementos de natureza econômica, filosófica e jurídica

O conjunto de normas do sistema positivo que tem por objeto a judicialização da política econômica do Estado é chamado de direito econômico. Este surge como resposta necessária depois do pós Primeira Guerra, nas décadas de 1920 e 1930, quando o modelo liberal clássico econômico de isenção total de intervenção entrou em colapso.

Naquele contexto, o direito cumprindo sua função de harmonizar as relações humanas, diante do novo desafio de desequilíbrio social, trouxe para si a responsabilidade de estabelecer a ordem por meio de normas jurídicas, regulando a atuação do Estado no domínio econômico. Em outras palavras é o Estado interferindo no mercado.

É curiosa a observação de que tal proposta surge de dentro da própria economia, e não da imposição unilateral de um suposto domínio do direito sobre as outras esferas do poder institucional.

O fato é que a intervenção estatal tem seu marco teórico em 1936, com a publicação da obra de John Maynard Keynes “A teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, que conclui que a depressão da atividade econômica no começo do século XX, exigiria a participação ativa e imediata do Estado, a fim de restabelecer a ordem e a prosperidade.

A mudança de foco do fluxo circular da renda, ou seja, a visão econômica que explica o nível de atividade por meio da produção, passa a potencializar o consumo como forma de elevar a renda nacional. Isso, conforme Keynes, seria possível mediante política monetária e fiscal expansionista.

Quando as relações econômicas passam a ser discutidas em foro jurídico, ou seja, quando o Estado traz para si a responsabilidade de equilibrar a economia mediante procedimentos legais, inaugura-se então o direito econômico, ou a união das esferas jurídicas e econômicas, de onde surge a possibilidade legal da interferência pública nas relações de mercado.

O direito econômico no Brasil só encontrou positivação constitucional em 1988, no artigo 24 inciso I e, 170 a 179, tratando da ordem econômica e financeira. Quando a Constituição estabelece os objetivos fundamentais da República, artigo 3º, I, II, III e IV, já anuncia também a possibilidade do Estado intervir em qualquer setor, a fim de garantir uma sociedade justa.

Sob outro fundamento, a “quantidade de Estado” que a sociedade deve suportar, remonta o pensamento filosófico moderno, ou seja, a Constituição do Brasil tem, notadamente, elementos históricos de natureza liberal ePage 12 republicana3, evidenciando a influência das idéias que revolucionaram o pensamento político Europeu, principalmente na Inglaterra e França nos séculos XVII e XVIII, conforme Paulo Bonavides e Paes de Andrade (2004, p. 811).

As arbitrariedades e injustiças do absolutismo, ou seja, do poder ilimitado do Estado de interferir na ordem econômica e social, especialmente aquele vivido na Inglaterra no começo do século XVII, impuseram à comunidade uma condição de insegurança e terror que se tornou insustentável à manutenção da ordem e harmonia entre o soberano e os súditos.

Jaime I governando a Inglaterra de 1603 a 1625, impôs um regime de total poder, provocando diversas disputas com o parlamento e, após sua morte, seu filho Charles I4 prosseguiu com os mesmos ideais de autoritarismo. Ao afrontar sucessivamente o parlamento, desencadeou o processo revolucionário inglês, que se dividiu nas revoluções de 1640 (Puritana) e 1688 (Gloriosa).

Neste período de conflitos, surge o principal teórico do liberalismo filosófico: John Locke (1632 – 1704).

Locke concebeu as diretrizes do Estado Liberal atribuindo ao indivíduo direitos naturais e inalienáveis, que deveriam ser assegurados pela instituição de uma sociedade civil criada por meio de um consenso entre os indivíduos. Nada mais natural que o liberalismo de John Locke fosse imediatamente adotado como pressuposto filosófico da gênese dos direitos, pois este explicava que o poder irrestrito e arbitrário do Estado na pessoa do monarca, além de ilegítimo, atentava injustamente contra a natureza humana.

O liberalismo nasce então em defesa do indivíduo, que na época da monarquia, ou da intervenção absoluta do Estado no cotidiano, atribuía a vida pouco ou nenhum valor, pois a morte de um cidadão era legítima, se assim o rei determinasse.

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Deste modo, o Estado de Direito e as idéias liberais se transformaram no melhor argumento na defesa e nas garantias dos direitos do indivíduo, quando o poder do Estado não respeitava os direitos fundamentais do homem.

As idéias liberais quando se opuseram à intervenção concentrada e absoluta, consideraram uma teoria na qual o Estado deve ser mínimo, ou seja, intervir naquelas funções restritas ao qual foi subordinado no pacto da sociedade civil, que lhe outorgou tão somente a garantia de preservação da propriedade5.

O contexto no período citado justificou as idéias liberais do Estado mínimo6.

A concepção liberal do Estado nasceu de uma dupla influência: de um lado, o individualismo filosófico e político do século XVIII e da revolução Francesa, que considerava como um dos objetivos essenciais do regime estatal a proteção de certos direitos individuais contra os abusos da autoridade; de outro, o liberalismo...

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