Duplamente queer: filme-ensaio brasileiro, narrativas dissidentes e direitos insurgentes/Genre/gender: Brazilian essay film, dissident narratives, and insurgent rights.

AutorPinheiro, Douglas Antônio Rocha

Introdução (1)

Entre 1983 e 2008, a cartunista estadunidense Alison Bechdel publicou Dykes to watch out for, uma tirinha em quadrinhos que retratava a vida de um grupo heterogêneo de mulheres lésbicas. De tal série, uma tira em particular, publicada em 1985 e intitulada The rule, extrapolou o universo da arte sequencial ao consagrar um teste verificador do grau de silenciamento imposto às mulheres no universo cinematográfico. Conhecido atualmente como Bechdel test, a verificação se baseia em três critérios objetivos de análise: a presença de, ao menos, (1) duas mulheres na narrativa que (2) conversem entre si sobre (3) qualquer assunto que não se refira a homens (BECHDEL, 1985).

Obviamente, o teste surgiu em um contexto de sátira social e, pela própria limitação posta pelo suporte artístico dos quadrinhos, não tinha a pretensão de estabelecer um modelo acadêmico-político de análise da representação de gênero nos meios de comunicação. Mesmo assim, ele obteve tamanha visibilidade que não só passou a ser utilizado, em muitas ocasiões, como um critério inicial de indexação de filmes--desde 2013, por exemplo, uma das avaliações feitas pelos cinemas suecos ao recomendar uma obra é indicar seu desempenho no Bechdel test (O'MEARA, 2016: 1)--como também inspirou novos instrumentos de verificação audiovisual de inclusividade mínima em relação a minorias numéricas e/ou vulneráveis.

Em 2013, a organização não-governamental Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD) desenvolveu o teste Vito Russo, cujo nome homenageia o ativista estadunidense e autor do livro The celluloid closed (RUSSO, 1987). Segundo tal teste, um filme é minimamente inclusivo e aberto à visibilidade LGBTQIA+ se ele atende aos seguintes critérios simultaneamente: (1) apresentar, ao menos, uma personagem claramente identificável como sexo ou gênero-diversa (2) que não seja definida somente ou predominantemente por sua orientação sexual ou identidade de gênero e que (3) se vincule de tal modo à narrativa que seja impossível retirá-la sem comprometimento ou alteração substancial do roteiro original.

À luz do teste Vito Russo, seria possível questionar a representação fílmica queer manifesta durante o regime militar brasileiro (DENNISON, 2020): O menino e o vento (1967), cuja personagem principal, um jovem engenheiro, é indevidamente acusada de matar um outro homem por motivação sexual; O beijo no asfalto (1980), em que um homem cis-hetero, ao cumprir o último desejo de um moribundo, beijando-o, sofre forte rejeição do seu sogro--um homossexual não assumido que, no fundo, nutria por ele uma forte atração; Amor maldito (1984), em que uma mulher é acusada de matar a sua amante, embora, a rigor, a morte decorrera de um suicídio deflagrado pela pressão psicológica realizada por sua própria família lesbofóbica; Rainha Diaba (1974), baseado na história de Madame Satã, narra a vida de um marginal homossexual periférico que controlava uma rede de narcotráfico; O beijo da mulher aranha (1985), em que Luis Molina, uma personagem condenada por corrupção de menores e identificada pela crítica ora como um homossexual cisgênero afeminado (ECHAVARREN e KOPPLE, 1991), ora como uma mulher trans (DAVIS, 2008), envolve-se na prisão com o militante político Valentin.

Ao enfatizarem o pânico moral suscitado por pessoas dissidentes de sexualidade e de gênero, bem como a existência subalterna de suas vidas baseando-se apenas nesse marcador social de diferença, tais filmes dificilmente atenderiam ao segundo critério do teste Russo. Porém, mesmo uma cinematografia que o observasse, caso reproduzisse a jornada do herói, como aceitação ou recusa, acabaria enquadrando a historicidade das vidas precárias de populações LGBTQIA+ em modelos assimétricos de narratividade cisheteronormativa. Assim, a retomada do cinema brasileiro em momento de redemocratização político-jurídica não exigiu apenas uma observância maior à composição diversa de suas personagens, mas também a novas estruturas narrativas. Nesse contexto, merecem ser analisada as possibilidades fluidas criadas pelo filme-ensaio.

Afinal, o ensaio, como um não-gênero literário aberto a reflexões marcadas pela confluência de processos de subjetivação e de história social, seria a forma mais adequada para provocar, metodicamente sem método, o lugar das narrativas tradicionais e dominantes (ADORNO, 2003) ao permitir uma superposição da dupla fluidez de gênero enquanto literatura e identidade--o que, em português, é indicado pelo título deste artigo como "duplamente queer", mas que, em inglês, costuma ser expresso pelo binômio genre/gender. O filme-ensaio é a transposição desta forma para o suporte audiovisual. O presente artigo pretende, assim, enfeixar estas três dimensões: (i) o ensaio visual brasileiro a partir de dois filmes--Seams (1993) e Bixa Travesty (2018)--cada qual situado em uma das pontas do intervalo temporal recortado por este dossiê, a fim de apontar (ii) as possibilidades imagéticas abertas à diversidade dos corpos, desejos e afetos em cada um desses dois momentos sociais do pós-1988, bem como (iii) as alternativas epistemológicas e político-jurídicas insurgentes, de que uma estética ensaística é indiciária.

  1. O filme-ensaio como fluidez de gênero

    A primeira vinculação do cinema ao ensaio costuma ser atribuída a Eisenstein. Em 1927, ao elaborar um projeto de filmagem da obra O Capital de Karl Marx, o cineasta russo propôs superar a linearidade sucessiva fílmica em favor de uma lógica associativa de ideias por meio de mônadas de pensamento que, ao refletirem sobre o tema, manteriam entre si uma posição dialética (ALTER, 2018: 17-18). O projeto, todavia, nunca foi realizado. Em 1940, Hans Richter voltou ao tema. Para ele, o filme-ensaio seria uma resposta ao desafio de "tornar visível o mundo invisível dos conceitos, pensamentos e ideias" (RICHTER, 2007: 188). Diferente do documentário tradicional, gênero cinematográfico que registrava seus objetos e ilustrava de modo cronológico todas as etapas de um fazer visível--sendo, à época, percebido como retrato do real e não somente um discurso sobre ele -, o ensaio fílmico precisaria integrar material visual de distintas procedências, encenar situações para as quais não haveria um registro, "saltar livremente no tempo e no espaço" para concretizar seu objeto abstrato e intervir criativamente no mundo.

    Alexandre Astruc, em 1948, chamou essa linguagem visual de caméra-stylo, ou seja, câmera-caneta, já que o diretor de cinema escreveria com sua câmera assim como um escritor o fazia com sua esferográfica. Baseando-se tanto na metodologia imagética simbólica associativa que, ao relacionar as pessoas entre si ou com objetos, seria capaz de representar o pensamento, quanto numa democratização do suporte com o surgimento da bitola de 16mm, Astruc acreditava que o cinema superaria a tirania do visual, da imagem pela imagem, por meio de uma linguagem ensaística, uma escritura flexível sobre a película destinada à reflexão, não somente ao espetáculo (ASTRUC, 1989). Nos anos 1950, a crítica já começava a identificar alguns filmes como efetivamente ensaísticos. Para Bazin, Lettre de Sibérie (1957) de Chris Marker era um ensaio sobre a realidade da Sibéria documentado por um filme (BAZIN, 2017). Para Burch, que chamava o audiovisual ensaístico de filme-meditação, Georges Franju com Hôtel des Invalides (1952) expunha teses e antíteses numa mesma obra, o que fazia um filme encomendado pelo Ministério do Exército parecer, ao mesmo tempo, um registro patriótico e uma ode contra a guerra; e Jean Luc-Godard, com a Nouvelle Vague, teria alcançado o desejo de Eisenstein: permitir que o tema fosse a base de uma construção intelectual capaz de se transformar na sua própria forma, sem precisar, pois, ser alterada ou atenuada (BURCH, 1973: 188-192). A estes, somaram-se, ainda, o cinema memorial de Alain Resnais, a etnofilmografia de Jean Rouch e cinescritura de Agnès Varda.

    Se na década de 1940 o filme-ensaio foi percebido como uma forma aberta a várias possibilidades, a concreta realização audiovisual ensaística nos anos que se seguiram arrefeceu a reflexão teórica sobre tal linguagem. Assim, apenas nos anos 1980, com o surgimento de uma produção fortemente marcada pela auto-inscrição fílmica de cineastas, por meio de uma ensaística que mesclava experiências pessoais e história social, na qual se incluem, por exemplo, Trinh T. Minh-há com Reassemblage (1982), Michael Moore com Roger and me (1989) e, novamente, Chris Marker com Sans Soleil (1983), o tema voltou à tona (WEINRICHTER, 2007). Nesses novos estudos, o grande desafio passou a ser a identificação descritiva das características recorrentes do filmeensaio diante da dificuldade de delimitá-lo conceitualmente, o que o levou a ser percebido como um não-gênero (ALTER, 1996: 171) pois, embora rotulável como cinema de não-ficção, transita de modo fluido entre os gêneros documental e experimental, sem com eles se conformar.

    A primeira dessas características seria o rebaixamento da imagem, uma redução de seu suposto sentido original e auto-explicativo por meio de mediações para convertêla, assim, em instrumento de análise. O distanciamento necessário para a utilização da imagem em segundo grau se dá pela montagem, graças à sua capacidade de manipular o fluxo imagético. A forma mais evidente da montagem ensaística é a que se move do ouvido ao olhar (BAZIN, 2017: 104), valendo-se da palavra escrita ou falada como mecanismo de desnaturalização da imagem. Tal verbalidade deve apresentar uma certa unidade de pensamento, mesmo quando produzida conjuntamente por diretores e roteiristas, e corresponder a um identificável ponto de vista retórico em que as informações de fundo são articuladas de forma, ao mesmo tempo, eloquente e estética (LOPATE, 2017: 111-113). Ainda que possa ser manifesta por legendas ou cartelas, a palavra costuma ser veiculada oralmente, por meio de uma voz-over. A voz ensaística, porém, ao fundir o discurso público e...

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