Ética, biopoder e sociedades tecnocientíficas

Autor1.Vicente de Paulo Barretto 2.Luís Fernando Moraes de Mello
Cargo1.Livre-docente em Filosofia pela PUC-Rio. Professor Pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UERJ e da UNISINOS. - 2.Mestre em Direito pela UNISINOS.
Páginas30-49

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Introdução

A tecnociência e, principalmente, aquela nascida no contexto da revolução da biotecnologia, possibilitou à ação humana o exercício de poderes em dimensões nunca dantes imaginadas. O potencial da intervenção humana na natureza não só foi incrementado quantitativamente, como também qualitativamente. O homem passou a manipular a sua própria natureza, bem como a natureza extra -humana, tornando imprevisíveis, em muitos casos, as conseqüências das suas ações. O exame dos problemas éticos suscitados pela biologia e a engenharia genética, entre os quais a questão das células-tronco o exemplo mais atual desse desafio, pressupõe o estabelecimento de paradigmas ético-filosóficos para o seu entendimento e formulação, tanto do ponto de vista moral, como do político e jurídico. Isto porque essas questões vitais para a humanidade não encontram solução no campo específico do conhecimento científico e nem do sistema político e jurídico. Necessitam, antes, que sejam submetidas a uma análise ético-filosófica, que considere os avanços do conhecimento científico e abandone as abstrações da ética tradicional ou dogmática.

Hans Jonas desenvolve o argumento de que toda capacidade humana, “como tal” ou “em si”, é boa, tornando-se má apenas quando se abusa dela. Portanto é sensato formular-se o seguinte caveat diante do avanço do conhecimento científico e suas aplicações tecnológicas: utilize este poder, mas dele não abuse. O pressuposto para que se possam determinar os limites ao poder de intervenção do ser humano, especificamente, aquele exercido pelo biopoder3, reside na determinação do uso correto e do uso abusivo de uma mesma capacidade.4 Nesse sentido, podemos dizer que o biopoder (ou biopolítica) está relacionado a questões de gestão e regulação social, nacional e internacional das implicações do desenvolvimento da biomedicina e da biotecnologia. Particularmente, a biopolítica tem por objeto as políticas da saúde e do meio ambiente, o tratamento eqüitativo das desigualdades, e a gestão do risco diante a emergência da complexidade em todos os âmbitos da sociedade. Emílio Muñoz diz que a biopolítica pode ser definida como a parte da bioética que transforma os problemas da interação entre as sociedades e os sistemas biológicos em decisões e acções políticas através de acordos, normas, regulamentações e leis. Em resumo, a biopolítica enfrenta os aspectos políticos e regulamentaresPage 31da bioética, encarando-a no plano, não dos indiv íduos, mas da sociedade em geral.5

Na sociedade tecnocientífica, a ação humana se identifica com a ação técnica, produzindo efeitos que não podem ser determinados como “bons” ou “maus” através de distinções qualitativas evidentes por si. Neste sentido é que Jonas refere-se ao surgimento de um novo paradigma ético.

O uso da capacidade de criar e produzir em grande escala, por melhores que sejam as intenções, fazem com que as ações na sociedade tecnocientífica provoquem, de forma crescente, efeitos maus que são inseparáveis dos efeitos bons. O lado ameaçador da técnica existe não só quando ocorre o abuso dela por má vontade, mas também quando ela é empregada de boa vontade para fins próprios legítimos. Ocorre o que Boudon chamou de “efeitos perversos” da ação social.6

Contra o alerta relativo aos riscos da ambivalência da técnica e, ao mesmo tempo, procurando justificá-la, teóricos da ciência levantam o argumento de que na natureza mesma há processos que também comportam falhas ou imperfeições, como a reprodução humana. Essa pode ter insucesso ou imperfeições, mas esses efeitos não são prejudiciais à natureza humana e extra-humana por integrarem o processo evolutivo que possui leis intrínsecas para harmonizar a diferença que surge das mutações.

A simples equiparação dos efeitos perversos da técnica com a contingência da natureza pode ser tomado como exemplo do horizonte do imaginário científico, que não reconhece valores e fins que são intrínsecos à natureza, tomando-a como matéria bruta plenamente suscetível de transformação de acordo com os critérios da vontade humana.

Essa forma de pensar pode ser compreendida como produto, e ao mesmo tempo como implicação, de alguns problemas, que são considerados resultados de um niilismo que se fortaleceu no século XX, tanto no âmbito das ciências, quanto do pensamento humano em geral. O niilismo caracteriza-se, assim, por considerar que: (a) o homem encontra-se deslocado do mundo, mas existe e pensa apesar do mundo7; (b) a extrema contingência da existência humana a priva do sentido doPage 32todo, sendo o sentido não mais encontrado e sim dado pelo próprio homem; (c) ocorre uma separação dos domínios objetivo e subjetivo, a partir da qual o homem, através da técnica, passou a manipular a natureza segundo a sua vontade; (d) modifica-se a imagem da natureza, tornando relativa a idéia de que o homem vive em um ambiente cósmico; (e) a obrigação é uma invenção humana, não uma descoberta baseada no ser objetivo do bem em si mesmo; (f) o fundamento do ser é indiferente para a nossa experiência de obrigação. Essa indiferença do ser é a própria indiferença da natureza, impossibilitando assim que a ciência moderna apreenda em toda a sua complexidade quais os fins intrínsecos à natureza, que balizariam a atividade humana.

Neste ponto, é importante dizer que a ciência está situada em um âmbito ôntico, desenvolvendo-se em uma racionalidade apofântica que constrói enunciados fundados no método que estrutura a ciência. O limite do pensar da ciência é o limite imposto por seu próprio método.8 Portanto, a ciência compreende apenas o que o seu método permite que ela compreenda. A ciência por si só não é suficiente para alcançar o âmbito ontológico da manifestação dos valores que consubstanciam o agir humano a fim de projetar referenciais éticos para a produção científica e manipulação da natureza.

A falta de referenciais ético-filosóficos para a ciência contemporânea impede que ela possa se posicionar adequadamente diante dos problemas que surgem da sua própria produção. Ao projetar os seus questionamentos éticos levando em consideração a estrutura e eficiência do seu próprio método, a ciência reduz de forma equivocada a tematização ética a problemas como “produção de sucessos ou falhas” ou a “busca humana pela perfeição”, tratando-as como questões fundamentais. Na verdade, essas são questões localizadas no âmbito ôntico das ciências, no qual o pensar está reduzido à técnica em si mesma e às suas possibilidades, que por essa razão não conseguem resolver as suas aporias essenciais.

A questão que propomos aqui como fundamental para a compreensão da problemática da tecnologia – e, portanto, do agir técnico – pressupõe a superação de dualismos como consciência e mundo exterior, forma e matéria, sujeito e mundo, liberdade e necessidade, bem como de monismos que oferecem maior dignidade ou à morte ou à vida.

O dualismo retirou da matéria todo o conteúdo que pudesse dizer respeito a sentimentos, ao espírito, interiorizando na consciência do sujeito todos essesPage 33atributos. A matéria passou a ser concebida como matéria pura e sem vida. O homem descobriu-se como ser alheio ao mundo. Esta oposição levou o homem a retirar o sentido do mundo, implicando na mecanização da natureza. Todo sentido ou sentimento passou a ser considerado como pura representação que um sujeito faz com relação ao mundo. Como afirma Hans Jonas:

(...) a simples possibilidade de se conceber um “universo não animado” surgiu como oposição à ênfase cada vez mais exclusiva colocada sobre a alma humana, sobre sua vida interior e sobre a impossibilidade de compara-la a qualquer coisa da natureza. Est a separação trágica, que se tornou cada vez mais aguda até o ponto de os elementos separados deixarem de ter qualquer coisa em comum, passou desde então a definir a essência de ambos, precisamente através desta exclusão mútua. Cada um deles é o que o outro não é. Enquanto a alma, que se voltava para si própria, atraía para si todo significado e toda dignidade metafísica, e se concentrava em seu ser mais íntimo, o mundo era despido de todas estas exigências9

Com a radicalidade do dualismo, o corpo e o mundo material como um todo passavam a ser concebido como uma prisão da alma, um túmulo para o espírito. Esse monismo baniu a vida universal, não estando mais apoiada por nenhum pólo transcendente. Assim, a vida finita e particular passou a ser valorizada como um aqui e agora, que se este entre um início e um fim. Isto significa que o lugar da vida no âmbito do ser ficou reduzido ao caso particular do organismo nos seus condicionamentos terrenos. O que condiciona e possibilita a vida é um improvável acaso do universo, alheio à própria vida humana e dotada de leis materiais indiferentes ao fenômeno vital.10

Todos esses movimentos apresentam continuidades e descontinuidades com relação aos binômios matéria/forma, corpo/alma, vida/morte. Mas chama atenção o fato de que estas orientações nos obrigam a fazer uma opção entre um conceito ou outro. Hans Jonas propõe uma superação deste dualismo a partir da idéia de que existe nos organismos não apenas algo que os movimenta – como o princípio interior à sua própria natureza, pensado por Aristóteles – como também uma maneira de existir que pode ser percebida objetivamente. Por essa razão, Hans Jonas diz que não há uma separação entre o orgânico e o espiritual. A percepção e o movimento são intrínsecos ao orgânico e seguem uma finalidade que a própria natureza possui.

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Essa finalidade é encontrada a partir da pressuposição de uma liberdade intrínseca à natureza. Assim, a evolução e a vida não estão lançadas ao puro acaso ou a uma estrita necessidade. Hans Jonas escreve que

(...) nos obscuros movimentos da substância orgânica primitiva, dentro da necessidade sem limites do universo físico, ocorre um primeiro...

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