A Ética em Kant e Kelsen por Schopenhauer

AutorClóvis Lopes Colpani
CargoProfessor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Gama Filho
Páginas301-324

Page 301

1. Introdução

O título até poderia ser uma pergunta, pois o objetivo do trabalho é indagar qual a melhor forma de tecer uma crítica sobre a ética em Kelsen, que tem muito de seus fundamentos teóricos calcados em Kant.

Inicialmente é necessário verificar o que é a ética em Kelsen, perguntando por que ele a classificou como uma ciência que tem por objeto as normas de moral postas, separando-a da ciência jurídica que tem por objeto as normas de direito postas.

Analisada esta questão, é necessário verificar até que ponto Kant influenciou a construção do pensamento Kelseniano no que se refere à ética e sua separação do direito, para tanto, é fundamental analisar os conceitos Kantianos de moral e direito.

Identificados os aspectos coincidentes em Kant e Kelsen, entrarse-á no pensamento de Schopenhauer, buscando demonstrar sua crítica sobre o fundamento da moral em Kant, bem como sua definição sobre o fundamento da moral.

Por fim, de posse de alguns elementos de Kant que permaneceram em Kelsen, buscar-se-á tecer uma crítica à Ética em Kelsen a partir de Schopenhauer, questionando-se a normatização da ética e sua separação em relação ao direito, proposta pelo normativismo dogmático Kelseniano.

Recolocar a ética na pauta do operador jurídico é importante, mas o crucial parece ser rediscutir seus fundamentos, sem dar-lhes um novo fundamento absoluto ou tentar normatizá-la, daí a opção por Schopenhauer.

2. A ética em Kelsen

No capítulo II da obra "Teoria Pura do Direito", Kelsen trabalha os conceitos de Direito e Ciência Jurídica, relacionando-os com osPage 302 conceitos de Moral e Ética. Entende que as normas morais são o objeto a ser conhecido e descrito pela Ética, da mesma forma que as normas do direito são o objeto a ser conhecido e descrito pela Ciência Jurídica.1 Nessa definição fica clara a influência do positivismo filosófico no pensamento Kelseniano, ao conceber que o objeto de qualquer tipo de ciência deve ser conhecido e descrito tal qual ele é, sem que se possa questionar seus fundamentos. Auguste Comte, ao tratar da filosofia positiva, salienta a importância da observação dos fenômenos e da descoberta das leis naturais que os regem, sem preocupar-se com "a investigação das chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais".2

O jurista austríaco define a ética como ciência de normas,3 assim como a ciência jurídica. A função da ética seria então de "conhecer e descrever a norma moral posta por uma autoridade moral ou consuetudinariamente produzida".4 Não há possibilidade de a ética questionar os fundamentos das normas morais, que já foram estabelecidas em uma etapa anterior a sua intervenção descritiva.

Mas existe uma relação entre Direito e Moral para Kelsen? Existe, e nesta relação está inserida a relação entre direito e justiça, que segundo ele é uma "exigência da moral". No prefácio à segunda edição da "Teoria Pura do Direito", lê-se: "O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica".5 Kelsen remete o assunto para a política jurídica em apêndice à "Teoria Pura do Direito".

O conceito Kelseniano de Justiça também passa pela normatividade, vez que somente pode ser considerado justo, aquele que age de acordo com uma norma que prescreve a conduta considerada justa, pois: "A justiça de um indivíduo é a justiça de sua conduta social; e a justiça de sua conduta social consiste em ela corresponder a uma norma que constitui o valor justiça e, neste sentido, ser justa".6

Para Kelsen a validade de uma norma do direito positivo independe da validade de uma norma de justiça. Uma norma do direito positivo não pode ser avaliada com base em critérios de justiça ou injustiça, o que somente pode ser mensurado no âmbito das normas de justiça que estabelecem as condutas justas ou injustas.7 Pensar dePage 303 modo diverso corresponderia a macular a pureza da teoria do direito proposta pelo autor.

Com base nesse fundamento, que é lógico, poder-se-ia dizer que no julgamento de determinada demanda judicial, a justiça ou injustiça são irrelevantes, desde que a decisão tenha sido fundamentada com base em uma norma do direito positivo válida.

Afastar os juízos de valor das normas do direito positivo é uma obsessão no pensamento kelseniano. No estudo de uma teoria formal do direito isto pode parecer razoável, uma vez que o objetivo seria conhecer e descrever a estrutura formal de determinado ordenamento jurídico, porém, quando se trata de uma teoria geral do direito, fazer uma depuração de qualquer tipo de valor, inclusive a justiça, corresponde a esvaziar de conteúdo os fundamentos dessa mesma teoria.

A busca da definição do que seja justiça, que é uma questão discutida desde os pré-socráticos, passando pelo cristianismo, pelo racionalismo Kantiano, pelo utilitarismo, e tantas outras correntes de pensamento, surge para Kelsen como um "elemento químico", que deve ser isolado na experiência de purificação da teoria do direito. Isolado o elemento justiça, utiliza-se o mesmo normativismo dogmático para seu conhecimento e descrição.

O terreno movediço que o conceito de justiça representa, constituiuse numa ameaça à teoria pura do direito; trabalhar com ele somente seria possível no âmbito de uma política jurídica, e ainda assim dentro de uma ética que se limita a conhecer e descrever as normas morais postas, sem questionar seus fundamentos.

A justiça, e com ela a ética, estariam então domadas. Não incomodariam mais o operador do direito, até porque não são mais uma preocupação sua no momento de aplicação da norma do direito positivo.

Resolvido (ou não) o problema da justiça, é importante voltar à diferença entre moral e direito. Na concepção Kelseniana a Moral e o Direito não se diferenciam por uma corresponder à conduta externa (Direito) e outra a conduta interna (Moral), pois ambas determinam condutas internas e externas.8 Nesse ponto KelsenPage 304 faz referência a Kant, afirmando que a doutrina ética deste é concebida a partir da perspectiva de que apenas uma conduta dirigida contra a inclinação ou interesse egoístico pode ter valor moral. Não concorda com este ponto de vista, e, citando o exemplo de alguém que mata contra sua inclinação egoística, explica como se pode agir contra uma norma moral.9

O jurista austríaco faz todo esse contorno para explicar que uma conduta moral, não é a ação contra a inclinação egoística, como queria Kant, mas sim a ação de acordo com o que preceitua a norma moral posta.

Direito e moral também não se diferenciam em Kelsen em virtude da criação ou aplicação das suas normas, nisto são similares. Como já foi dito, o normativismo dogmático é utilizado como meio para explicar a criação e aplicação tanto das normas do direito como as da moral.

A diferença essencial estaria em que o Direito "se concebe como uma ordem de coação"10, o que não ocorre com a moral que seria uma ordem social para qual não são previstas sanções cuja aplicação seja socialmente organizada.11 A sanção na moral corresponderia na aprovação ou desaprovação da conduta conforme a norma moral posta, contudo não se poderia cogitar a utilização autorizada de força física para sua aplicação.

Na concepção Kelseniana a tese de que o direito é moral e portanto é justo, somente é possível a partir da crença em um valor moral absoluto, o que iria contra uma verdadeira investigação científica. Conforme já exposto, ao deparar-se com essa dificuldade Kelsen preferiu isolar o elemento justiça, que seria estudado no âmbito da política jurídica, assim o direito não precisa ser justo.

A relatividade do valor moral para o pensamento Kelseniano, conduz ao extremo de excluir a possibilidade de discuti-lo em sede de criação e aplicação das normas do direito positivo. A pretensão de universalidade de seus princípios, leva a "Teoria Pura do Direito", não a ignorar a diversidade de valores existentes entre os diversos povos comunidades e indivíduos, mas sim a concebê-los como desnecessários na aplicação das normas de todo e qualquer sistemaPage 305 jurídico, que seria formado a partir da norma fundamental, tendo como guia o formalismo positivista.

Gregorio Robles Morchón ao tratar da norma fundamental Kelseniana entende que esta é como um chapéu que serve em qualquer cabeça:

"Lo malo de la norma fundamental es que es como un sombrero que sirve para qualquier cabeza, lo mismo para la del hombre bueno y justo que para la del pendenciero y matón". 12

Kelsen ressalta por diversas vezes que não ignora a existência de valores e em especial do valor justiça, entretanto, deixa claro que em virtude de sua relatividade é importante separá-los do direito, pois caso contrário estar-se-ia privando a ciência jurídica de um objeto de estudo puro.13

Ao tratar da "justificação do direito pela moral" Kelsen volta a trabalhar na idéia de separação entre direito e moral, uma vez que segundo ele somente seria possível justificar o direito por valores morais caso se pudesse falar em um direito bom e um direito mau. Na sua concepção o direito não é bom nem mau, e sendo o objeto de uma ciência jurídica, esta não pode aprová-lo ou desaprová-lo, mas sim conhecê-lo e descrevê-lo.14 Ressalta: "O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito".15

Ao tratar do mito da neutralidade no direito Mauro Almeida Noleto pontua: "A pretensão de objetividade esposada pelo formalismo acredita que a isenção dos operadores jurídicos decorre da suposta existência objetiva da lei positiva, e o trabalho daqueles não seria mais do que realizar a subsunção da norma geral ao caso concreto".16

Cabe citar aqui a jurisprudência do TJSC, na qual observa-se que já há...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT