Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil

AutorLenio Luiz Streck
CargoPós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica; Procurador de Justiça-RS; Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS
Páginas258-295

Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil1

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  1. A crise do Direito e do Estado

(Re)utilizando as palavras de Eros Roberto Grau na apresentação do meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise - Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito, muito se escreveu e ainda se escreve a propósito da crise do Direito, apresentada agora, definidamente - e sobretudo entre nós, brasileiros - sob feição particular, vale dizer, como crise do Poder Judiciário. É inegável a existência dessa crise. Não podemos deixar de apontar, contudo, duas evidências. Uma, a de que essa peculiar "crise do Direito" não é, originariamente, dele, senão de que o produz, o Estado. Vivemos, nesta última década, sob deliberado processo de enfraquecimento do Estado, patrocinado pelos governos neoliberais globalizantes dos Presidentes Collor e Cardoso. O exame das propostas frustradas de reforma constitucional pretendidas pelo primeiro e daquelas logradas pelo segundo evidencia a identidade de valores nos programas de um e de outro. Ora, obtida a fragilização do Estado, todos os seus produtos passam a exibir asPage 259 marcas dessa fragilização. O Direito que imediatamente conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos ser "posto" pelo Estado não apenas porque seus textos são escritos pelo Legislativo, mas também porque suas normas são produzidas pelo Judiciário. Em segundo lugar, cumpre observar que a fragilização do Poder Judiciário atende a interesses bem marcados dos Executivos fortes, que se nutrem de projetos desdobrados de uma nítida transposição, hoje, dos quadros do privado para os do público, do individualismo possessivo. Penso podermos afirmar que, se de um lado o capitalismo já não padece do temor da contestação social, os executivos já não têm pejo de violar as Constituições e de violentar as exigências de harmonia entre os Poderes. A América Latina tem sido profusa e generosa em exemplos... O desconforto provocado por essa crise coloca os estudiosos do Direito sob o desafio do descobrimento de caminhos que conduzem à produção de justiça material, no mínimo a uma reeticização do Direito.2

Nesse contexto, torna-se imprescindível discutir a crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, e seus reflexos na sociedade, a partir do papel da justiça constitucional. Com efeito, preparado/ engendrado para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, o Direito e a dogmática jurídica (que o instrumentaliza) não conseguem atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa (J. E. Faria). O paradigma (modelo/modo de produção de Direito) liberal-individualista-normativista está esgotado. O crescimento dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social (re)clamam novas posturas dos operadores jurídicos.

Torna-se necessário, pois, diante desse quadro, rediscutir as práticas discursivas dos juristas. Visivelmente há uma crise que, antes de mais nada, precisa ser des-coberta "como" crise. Essa crise ocorre porque o velho modelo de Direito (de feição liberal-individualistanormativista) não morreu e o novo modelo (forjado a partir do Estado Democrático de Direito) não nasceu ainda. Deixar vir o novo à presença: esse é o desafio.

Por tudo isto, a discussão acerca do constitucionalismo contemporâneo é tarefa que se impõe. O Constitucionalismo não morreu. As noções de constituição dirigente, da força normativa da Constituição, de Constituição compromissária, não podem ser relegadas a um plano secundário, mormente em um país como o Brasil, onde as promessas da modernidade, contempladas no texto constitucionalPage 260 de 1988, longe estão de ser efetivadas. Há que se detectar os problemas que fizeram com que a expressiva parcela dos dispositivos da CF/88 não obtivessem, até hoje, efetivação: a prevalência/ dominância do paradigma da filosofia da consciência, refratário à guinada lingüístico-hermenêutica, de cunho objetificante (portanto metafísico), que provocou a entificação do ser (sentido) do Direito (e sobretudo da Constituição); a não existência de um Estado Social no país, muito embora o forte intervencionismo do Estado (e do Direito); a prevalência do paradigma liberal de Direito, mormente pela co-existência promíscua de um ordenamento infraconstitucional não filtrado constitucionalmente; o não estabelecimento de um tribunal constitucional ad-hoc; o processo de globalização e das políticas neoliberais, são alguns fatores que obstaculizam a implantação daquilo que aqui denomino de "realização das promessas da modernidade".

Nesse sentido, um dos pontos fundamentais, para um melhor entendimento/enfrentamento de toda essa problemática exige uma discussão acerca do papel do Direito (portanto, da Constituição) e da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito, bem como das condições de possibilidade para a implementação/ concretização dos direitos fundamentais-sociais a partir desse novo paradigma de Direito e de Estado. Assim, além das necessárias críticas ao paradigma liberal, torna-se importante o enfrentamento, ainda que de forma superficial, das posturas procedimentalistas, que, ao repelirem o paradigma do Estado Social, fragilizam sobremodo a noção de Estado Democrático de Direito, que é plus normativo em relação ao paradigma promovedor do Welfare State.

2. Constituição, Direito e Democracia: As dimensões processuais e substantivas - um debate necessário

A discussão dessas questões, a toda evidência, pressupõe algumas pré-compreensões, a saber: se, se está a falar/indagar acerca do papel/função da Jurisdição Constitucional (ou do Poder Judiciário) na realização/efetivação de direitos sociais-fundamentais, é porque se está a admitir que, primeiro, há uma inefetividade da Constituição, e, segundo, em havendo inércia dos Poderes Públicos na realização/ implementação de políticas públicas aptas à efetivação dos direitos sociais-fundamentais assegurados pela Lei Maior, é possível (e necessária) a intervenção da justiça constitucional. A toda evidência,Page 261 tais questões implicam outras três, que se interpenetram: a) a necessidade de uma redefinição na relação entre os Poderes do Estado; b)a admissão de que a justiça constitucional possa vir a ter um papel intervencionista, e c) um certo grau de dirigismo constitucional. Por outro lado, parece não haver dúvida de que, sustentando essa discussão, está a concepção de Estado Democrático de Direito,3 que, conforme nos ensina a tradição, assenta-se na democracia e na realização dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, em face das profundas alterações paradigmáticas ocorridas na teoria do Estado e da Constituição, a noção de Estado Democrático de Direito pressupõe uma valorização do jurídico, e, fundamentalmente, exige a (re)discussão do papel destinado ao Poder Judiciário (e à justiça constitucional) nesse (novo) panorama estabelecido pelo constitucionalismo do pós-guerra, mormente em países como o Brasil, cujo processo constituinte de 1986-88 assumiu uma postura que Cittadino4 muito apropriadamente denomina de "comunitarista", onde os constitucionalistas (comunitaristas) lutaram pela incorporação dos compromissos ético-comunitários na Lei Maior, buscando não apenas reconstruir o Estado de Direito, mas também "resgatar a força do Direito", cometendo à jurisdição a tarefa de guardiã dos valores materiais positivados na Constituição.

A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentaissociais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação ou forma de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade,5 tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais.

A essa noção de Estado se acopla o conteúdo material das constituições, através dos valores substantivos que apontam para uma mudança do status quo da sociedade. Por isso, no Estado Democrático de Direito a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-compromissário-valorativo-principiológico.

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A democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem a lume Constituições cujos textos positivam os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a...

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