Atuação do estado no domínio econômico e sistema financeiro nacional. Inexigibilidade de licitação em incorporação ou em alienação do controle de uma sociedade de economia mista por outra sociedade de economia mista

AutorGilberto Bercovici - Alexsandro Broedel Lopes
Páginas233-270

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Consulta

O Banco do Brasil S/A, por intermédio de seu Diretor Jurídico, Dr. Joaquim Portes de Cerqueira César, honra-me com a formulação da seguinte Consulta, cujos termos transcrevo abaixo, para análise e produção de Parecer:

"Na data de 21.5.2008, o Banco do Brasil S/A e a Nossa Caixa S/A publicaram fato relevante ao mercado, em conformidade com o § 4° do art. 157 da Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e a Instrução CVM n. 358, de 3 de janeiro de 2002, nos seguintes termos:

“‘1. O Banco do Brasil S/A propôs, e o Governo do Estado de São Paulo aceitou, iniciar tratativas sem nenhum efeito vinculante, visando à incorporação do Banco Nossa Caixa S/A pelo primeiro, observadas a regulamentação vigente e as condições inerentes às operações dessa natureza, notadamente a obtenção de prévia autorização legislativa no âmbito estadual.

“‘2. É consenso ainda que a operação deverá preservar adequadamente os interesses do público relacionado das companhias envolvidas, incluindo empregados, correntistas, acionistas e outros parceiros.

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“‘3. Fatos adicionais, julgados relevantes, serão divulgados ao mercado de acordo com a evolução das tratativas'.

"A propósito do assunto, o Banco do Brasil S/A solicita manifestação prévia de Vossa Senhoria quanto ao interesse na elaboração de parecer jurídico com o ob-jetivo de responder aos quesitos ao final enumerados, com relação à inaplicabili-dade da Lei de Licitações à mencionada incorporação:

"1) Vez que na incorporação societária não ocorre a alienação (ou seja, a venda de ações com recebimento em dinheiro), mas sim a substituição das ações dos acionistas da sociedade incorporada por ações da sociedade incorporadora, é correto afirmar que, nessa hipótese, não se aplica a Lei de Licitações, por não se enquadrar nas hipóteses do caput do art. 2o da predita lei?

"2) Ainda que negativa a hipótese do quesito anterior, é possível afirmar que o acionista controlador de instituição financeira de economia mista estadual, distrital ou federal possui liberdade de escolha acerca de eventual reorganização societária dessa instituição financeira? Ou seja, pode escolher, dentre outras, a incorporação societária, a incorporação de ações, a alienação de controle acionário, bastando apenas, neste caso, justificar o interesse público? Ou obrigatoriamente o acionista controlador teria de levar a venda das ações a leilão, para assegurar o recebimento do melhor preço/proposta?

"3) Considerando que o acionista controlador de uma sociedade de economia mista é livre para escolher a modalidade de reorganização societária, caso a escolha recaia na incorporação societária ou incorporação de ações, pode-se afirmar que nessas hipóteses restaria caracterizada a inexigibilidade de licitação pela inviabilidade de competição (art. 25, LLIC), uma vez que não há como estabelecer os termos e condições do certame licitatório para a escolha da empresa incorporadora?

"4) Quando se afirma que o Estado poderá intervir na atividade econômica, deve-se compreender que essa intervenção pode ser efetivada tanto pela União quanto pelos Estados-membros e Municípios? Essa intervenção na atividade econômica pode ocorrer por intermédio de sociedades de economia mista? É correto afirmar que as sociedades de economia mista (tanto da União, quanto dos demais Estados-membros) representam, dessa forma, verdadeiro instrumento da ação governamental dos respectivos entes federados?

Com base na resposta a essas questões, gentileza responder os seguintes sub-quesitos:

"a) É correto afirmar que entes de esfera diversa da Federação, por intermédio de suas sociedades de economia mista, podem conjugar esforços para melhor exercer suas respectivas ações governamentais?

"b) Essa ação governamental pode ser exercida pela incorporação de uma sociedade de economia mista estadual (Nossa Caixa) por uma outra sociedade de economia mista federal (Banco do Brasil), com vistas a manter o atendimento do interesse público?

"c) Considerando que essa ação governamental representa exercício da atividade econômica, é correto afirmar que tal ingerência do Estado na economia não está subordinada aos ditames da Lei n. 8.666/1993 ou, ao menos, na hipótese mencionada, seria inexigível eventual licitação por inviabilidade de competição?

"5) Ainda que não se admitisse a inexigibilidade ou a não aplicação da lei de Licitação, é possível afirmar que a incorporação da Nossa Caixa pelo Banco do Brasil estaria configurada na hipótese de dispensa de licitação pelo art. 17, inciso II, alínea b, da Lei de Licitações, por não haver pagamento em dinheiro, mas sim substituição/troca de ações dos acionistas da sociedade incorporada por ações da sociedade incorporadora, tratando-se, dessa

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forma, de uma permuta e assim permitindo o estabelecimento de negócio direto entre as partes (Nossa Caixa e Banco do Brasil), sem a necessidade de procedimento licitatório?

"6) Tanto na hipótese de inaplicabili-dade da Lei de Licitações, quanto nas de sua inexigibilidade ou dispensa, apresentadas nos quesitos anteriores, é possível afirmar que a incorporação da Nossa Caixa pelo Banco do Brasil atende ao interesse público? A afirmativa é reforçada pelo fato de as sociedades de economia mista, desde o seu nascedouro, já terem sua formação dirigida para o interesse público?"

Parecer
1. 1 Natureza e regime jurídico do Banco do Brasil S/A e da Nossa Caixa S/A

A criação do Banco do Brasil se deu por meio do Alvará de 12 de outubro de 1808, do Príncipe Regente D. João, que instituiu um banco público, sob o formato de sociedade por ações. Suas funções eram amplas, mas exerceu essencialmente as funções de poder emissor e de caixa do Tesouro. O prazo de duração previsto do Banco do Brasil era de 20 anos, sendo sua extinção determinada, pela Lei de 23 de setembro de 1829, para o dia 11 de outubro de 1829 (embora tenha se concretizado apenas em 11 de abril de 1835). Houve uma segunda tentativa de criação de um banco público no Brasil, por meio da Lei n. 59, de 8 de outubro de 1833, que previa a instituição de um banco de circulação e depósito pelo prazo de 20 anos, mas este banco não chegou a ser fundado.

Em 1851, Mauá criou o segundo Banco do Brasil, autorizado pelo Decreto n. 801, de 2 de julho de 1851. Este banco foi incorporado, juntamente com outros, pelo governo, por meio da Lei n. 683, de 5 de julho de 1853, que autorizou a criação de um banco de depósitos, desconto e emissão, com duração de 30 anos, posterior-mente estendida até o ano de 1910 (Lei n. 1.349, de 12 de setembro de 1866). Após a Proclamação da República, o Banco do Brasil fundiu-se com o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil (cuja criação fora autorizada pelo Decreto n. 190, de 29 de janeiro de 1890), adotando o nome de Banco da República do Brasil (Decreto n. 1.167, de 17 de dezembro de 1892, que autorizou a fusão ad referendum do Congresso Nacional, que a aprovou por meio da Lei n. 183-C, de 23 de setembro de 1893), sendo reestruturado mais uma vez, e novamente sob a denominação de Banco do Brasil, por meio da Lei n. 1.455, de 30 de dezembro de 1905.1

O Banco do Brasil é uma sociedade de economia mista, controlada pela União, vinculada ao Ministério da Fazenda e integrante do Sistema Financeiro Nacional (arts. F, III, 19 e 62, da Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e art. 189 do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967). A Nossa Caixa é, por sua vez, uma sociedade de economia mista estadual, que, embora vinculada à Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (art. 4o do Decreto-lei Complementar n. 7, de 6 de novembro de 1969), também integra o Sistema Financeiro Nacional (arts. 1°, V, 22 e 24, da Lei n. 4.595/1964). Sua criação, autorizada pela Lei Estadual n. 1.164, de 7 de agosto de 1951, deu-se com o nome de Caixa Econômica do Estado de São Paulo (CEESP) e sob a forma de autarquia, tendo sido transformada em empresa pública

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por intermédio da Lei Estadual n. 10.430, de 16 de dezembro de 1971, e, finalmente, em sociedade de economia mista por meio da Lei Estadual n. 10.853, de 16 de julho de 2001. A natureza jurídica de sociedade de economia mista de ambas instituições financeiras gera uma série de implicações jurídicas e parâmetros para sua atuação.

A sociedade de economia mista é, em sua estruturação atual, um fenômeno do final do século XIX e início do século XX, que se intensificou, especialmente na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).2 A Constituição alemã de 1919, a Constituição de Weimar, por sua vez, previu expressamente, em seu art. 156, a possibilidade de socialização, nacionalização ou participação estatal no setor empresarial.3

A visão tradicional, inspirada nos escritos do industrial alemão Walter Ra-thenau, entendia a sociedade de economia mista (gemischtwirtschaftliche Unter-nehmung) como uma associação livre de capitais privados e fundos públicos para a exploração de uma atividade econômica, um fenômeno "econômico", que não pertenceria às instituições administrativas.4 Esta concepção equivocada levou a uma série de debates, como o protagonizado entre nós por...

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