A ponderação econômica e as decisões da jurisdição constitucional: realidade e dever-ser

AutorPedro Rafael Malveira Deocleciano
CargoPrograma de Pós-Graduação em Direito - PPGD; Universiddade de Fortaleza Ceará. Mestrado em Direito Constitucional - Área Pública.
Páginas2-16

Page 2

Introdução

Os direitos fundamentais, traduzindo as prerrogativas básicas de cada indivíduo componente de um Estado de Direito2, estão decantados, de regra, em comandos da Constituição. Sob esse aspecto, as temáticas que envolvem direitos fundamentais dizem respeito, em última análise, à força normativa da Carta Magna e, portanto, às maneiras como esta é interpretada e concretizada.

Em outra elucidação essencial a esta pesquisa, importa ressaltar que os planos de efetivação dos direitos fundamentais, na realidade socioeconômica, são traçados em políticas públicas, isto é, em estratégias coordenadas pelo Estado em prol de aplicar as normas à realidade sobre a qual incidem. Portanto, políticas públicas representam a realização, do modo mais concreto possível, dos comandos constitucionais, os transportando à práxis.

No ensejo deste trabalho, compreende-se que o dever estatal de efetivar os direitos fundamentais (e cobrar seus respectivos deveres fundamentais) é a própria finalidade do Estado. De maneira que não pode interessar, especificamente, a entidade estatal que transporta as normas à realidade: todas as entidades estatais existem nessa razão.

Em aprofundamento, examina-se o papel do Poder Judiciário – sua atuação frente a políticas públicas. E tal papel é delicado, não apenas porque, historicamente, o Judiciário se distanciara dele, como porque, hoje, quando a aproximação é evidente, os outros poderes constituídos se inquietam.

O agitamento de Executivo e Legislativo resulta, principalmente, da tradicional noção de separação dos poderes e do denominado argumento orçamentário. Delineiamse ambos, na sequência, em breves linhas.

O conceito oitocentista (montesquiano) de separação dos poderes remete a uma independência de atividades estatais e não a uma integração. Era justificado pelo receio de que houvesse força capaz de concentrar todo o Estado (regresso ao Absolutismo do ancien régime), e criara uma noção de desagregar cada função possível (função dePage 3legislar, função de executar e função de julgar, por exemplo), de maneira que uma não interviesse no âmbito da outra, resguardando, em tese, a autonomia dessas atividades.

Com a digressão histórica, se depreende que as políticas públicas, tradicionalmente, estiveram a cargo do Poder Executivo, posto que consideradas prestações administrativas em nome dos direitos. Não se concebia, plenamente, que as leis já fossem concretizadoras dessas políticas ou que a garantia da aplicação dessas leis o fosse. De sorte que o Legislativo, porém peculiarmente o Judiciário, se alijaram do processo de aplicação dos direitos por meio de planos ordenados para tanto, cabendolhes sempre função ancilar ao Executivo.

Não obstante sua aplicação multissecular, essa sistemática tornara-se incompatível com a democracia de direitos3, isto é, com a espécie de Estado de Direito que distribui o bem comum (direitos e deveres4) através de todos os seus ramos, mesmo porque, conforme se disse, isto é mera decorrência da finalidade primordial do próprio Estado.

Não basta que as decisões fundantes da sociedade sejam tomadas pelo Legislativo; manejadas, na prática, pelo Executivo; e, acaso gerem conflitos, sejam levadas à pacificação dada pelo Judiciário.

As carências existentes e, adiante-se, as novas e constantes carências por existir, no modelo de Estado Democrático de Direito, situam os poderes estatais numa necessária reorganização. Se o Estado age na busca do ideal de concretizar a Constituição, cobrando os deveres e deferindo os direitos cabíveis a cada indivíduo, as atividades distintas em que se separou devem ser complementares, integradas e alinhadas para conquistar esse objetivo.

Nesse novo paradigma, em resumo, a doutrina e a jurisprudência debatem a respeito da atuação do Poder Judiciário. O fato intrigante, para o debate, é que não há complementaridade, integração ou alinhamento entre os poderes constituídos: há, isto sim, na maioria dos casos, omissão de todos eles, de algum, ou alguns, e a ação de um único, ou de alguns, para aplicar as políticas públicas. É dizer, a coordenação de todo o Estado ante as políticas públicas é, praticamente, utópica.

Com isso, essa premente ação (positiva) foi, cada dia, restando ao Judiciário, atividade estatal que, por épocas, se configurou pela passividade e pelo simples anúncio aos outros poderes de que alguma norma ou atitude administrativa faltavam para materializar o direito de um indivíduo.

Page 4

A partir da proliferação desses contextos, em que o próprio Judiciário determina as atitudes administrativas necessárias à praticabilidade dos direitos fundamentais sob seu crivo, o que se denominou ativismo judicial5, a preocupação institucional dos outros poderes despontara. A reivindicação é de que as costumeiras posições de Executivo, Legislativo e Judiciário permaneçam, a fim de combater o que, então, se apelidou ditadura dos juízes6.

Contudo, as razões filosóficas e institucionais apresentadas pelos outros poderes pareceram não abalar a atividade judicial de garantia dos direitos fundamentais, a partir de suas decisões. Todavia, contrapuseram as razões orçamentárias. A alegativa de que o resguardo de direitos através dos juízes desequilibra o trabalho do Executivo e pretende confinar o trabalho do Legislativo, no que se refere às leis orçamentárias, se densificou.

A argumentação da “reserva do possível” (teorização alemã que indica a impossibilidade de contingenciar o orçamento público definido em lei, para além dos limites ali estabelecidos) se prodigalizou entre todos os órgãos públicos, a fim de contestar ou descumprir mesmo, as decisões judiciais sobre políticas públicas7.

Não obstante, a mesma doutrina alemã, e a jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional tedesco, ponderaram que acima dos orçamentos haveria o vulto da dignidade da pessoa humana, isto é, o mínimo existencial (minimum existenzielle), uma parcela nuclear, essencial e inegável de direitos, que, ainda que não prevista em lei orçamentária, deve ser garantida, na prática.

De modo que os juízes passaram a sentenciar adicionando direitos às partes, por mais que não previstos expressamente, mas implícitos e diluídos no sistema constitucional vigente. Fenômeno conhecido por decisões (ou sentenças) aditivas8.

Portanto, a par de toda essa passagem de acontecimentos, o que se extrai é que o Judiciário continua a aplicar, por milhares e difusas decisões, porém, especialmente, através do Supremo Tribunal Federal, políticas públicas (determinando reservas orçamentárias, obrigando o Poder Executivo a conceder benefícios, revisar atos, renegociar dívidas com particulares, inverter efeitos de atos administrativos, investir em determinadas áreas, enfim).

E, por isso, o esforço de pesquisa que ora se introduz é pertinente, à medida que contribui para o incremento dessa atuação judicial, instrumentalizandoPage 5doutrinariamente e por meio de precedentes, a garantia dos direitos fundamentais, e, de outro lado, advertindo que tal contexto é insustentável, num Estado Democrático de Direito, em que todos os poderes constituídos devem perseguir a finalidade precípua do Estado: a distribuição do bem comum.

1 A proteção aos direitos fundamentais a partir da jurisdição constitucional

Os direitos fundamentais, catálogo de normas eleitas por determinada sociedade como indispensáveis à promoção do ser humano, são dispositivos, no contexto da ordem constitucional brasileira, comumente, passíveis de violação. Aliás, não apenas no contexto nacional, mas quando observada a realidade sócio-econômica dos países latino-americanos, o fato de se viver um exercício mínimo desses direitos é infeliz constatação: nunca aceitável. Enquanto cidadãos de uma sociedade democrática, deve ter-se assegurado o direito de desenvolvimento, digna e minimamente, de as potencialidades.

O que ainda não parece estar definido, em nossas mentes, é o alcance desses direitos e o seu poder de transformar a realidade. Apesar de alguns doutrinadores afirmarem que a questão no que toca à definição de um rol de direitos fundamentais está superada e que a preocupação se concentra, agora, em instrumentalizar esses conceitos, soa como um ledo engano. Embora o raciocínio seja pertinente, consideramos que ainda não superamos o primeiro obstáculo e é exatamente, por isso, que se encontramos sérias dificuldades em solucionarmos o segundo problema.

A discussão que têm demandado maior esforço doutrinário é saber determinar dentro do conceito de direito fundamental, são os limites que cada mandamento normativo guarda em seu bojo. Inicialmente, se poderia imaginar que esse debate é menos relevante para a prática e efetivação desses direitos, pois que a realidade que se nos afigura é demanda atitudes de caráter emergencial.

No entanto, tentar resolver o problema, atacando a sua consequência, seria ineficaz e interminável. Aliás, é necessário perceber, an passant, o quanto a teoria é valiosa para o aperfeiçoamento da prática. Sem a força impulsionadora daquela, estaríamos a discutir questões primitivistas, pois a materialização de uma boa ideia resulta em satisfação social.

Teoria e prática, não representam, portanto, dois momentos estanques do conhecimento científico. Pelo contrário: Uma teoria que afaste de princípio qualquer possibilidade de vir a aplicar-se praticamente não passa de um conjunto de proposições vazias de sentido e de utilidade. Por outro lado, uma prática que não seja a expressão e aplicação de conhecimentos teóricos é uma prática cega, assistemática, fortuita e, por isso mesmo, ineficaz9.

Page 6

É nesse sentido que, para que possamos colocar em prática uma teoria, seria, inevitavelmente, necessário definir os seus...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT