'Economia criativa' como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um novo recurso de poder
Autor | Elder Maia Alves - Bruno Gontyjo do Couto |
Cargo | Professor Associado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Contato: epmaia@hotmail.com. - Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Contato: brunogcouto... |
Páginas | 328-359 |
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2019v18n41p328/
328328 – 359
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“Economia criativa” como categoria
nativa: a atuação dos economistas e
as condições de legitimação de um
novo recurso de poder
Elder Maia Alves1
Bruno Gontyjo do Couto2
Resumo
Nas últimas duas décadas os temas economia criativa, indústrias criativas e cidades criativas ser-
viram como lastro técnico e operacional para a formulação e execução de uma série de políticas
de desenvolvimento econômico. Os principais artíces dessa profusão, legitimação e acúmulo de
poder foram os economistas, os administradores e os teóricos das escolas de negócios em estreito
interesse com os governos nacionais e as agências transnacionais do sistema ONU (Organização
das Nações Unidas). Esse processo somente se tornou possível em razão dos atravessamentos
entre as sociedades pós-industriais de serviços, a expansão da economia do conhecimento e a
contundente digitalização dos mercados culturais. A conjugação desses aspectos produziu uma
aproximação estrutural entre o domínio estético-simbólico e o econômico-tecnológico, resultando
no aparecimento de categorias nativas como economia criativa. Essas categorias não dispõem de
potencial descritivo e analítico que lhes permitam explicar as novas relações entre os dois domí-
nios, mas são elas mesmas resultado destas.
Palavras-chave: Economia criativa. Mercados culturais-digitais. Categoria nativa. Economistas.
1 Professor Associado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL). Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Contato: epmaia@hotmail.com.
2 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Mestre em Sociologia
pela Universidade de Brasília. Contato: brunogcouto@gmail.com.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 18 - Nº 41 - Jan./Abr. de 2019
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Introdução
Ao longo das duas últimas décadas, um processo de aproximação es-
trutural entre os domínios estético-simbólico e econômico-tecnológico3
ocorreu, produzindo uma nova constelação sócio-histórica4. A rigor, esses
domínios não estavam inteiramente afastados, pois as relações entre arte,
técnica e mercado existem pelo menos desde a segunda metade do século
XIX, aprofundando-se ainda mais no decurso do século XX. Contudo,
uma das marcas históricas das sociedades modernas fora justamente a sepa-
ração e diferenciação entre esses dois domínios. Ao contrário de outros mo-
mentos, quando categorias analíticas como a de indústria cultural cunhada
por Adorno e Horkheimer (1985) na década de 1940, a de materialismo
cultural proposta por Raymond Williams (2007) nos anos 1980 ou mesmo
a ideia de economias de signos e espaços de Lash e Urry (1993) na década
de 1990, no presente as Ciências Sociais não dispõem de uma categoria
descritiva e analiticamente potente com capacidade para traduzir as novas
relações entre os domínios estético-simbólico e econômico-tecnológico.
Atualmente, ocorre justamente o contrário. As categorias que emer-
giram nas últimas décadas com o to de traduzir essa aproximação estru-
tural são elas mesmas resultado e efeito do processo em questão. Tratam-
se das categorias-força de indústrias criativas, economia criativa e cidades
criativas, que foram construídas e disseminadas por governos, empresas
e organismos transnacionais. Como assinala Elias (1994), toda categoria
é um símbolo-conceitual que condensa valores, interesses e autoimagens
especícas. Contudo, essas categorias não são conceitos forjados de acordo
com os princípios do trabalho intelectual das Ciências Sociais, manuseados
segundo os imperativos empíricos da pesquisa, mas sim categorias nativas5,
3 Os termos estético-simbólico e econômico-tecnológico, aqui apresentados como esferas da vida social apar-
tadas uma da outra, dizem respeito respectivamente: i) ao campo cultural no seu sentido restrito e na sua
configuração moderna, enquanto espaço relativamente autônomo de produção de bens simbólicos. Ou seja,
os campos artístico e intelectual; ii) ao campo econômico, enquanto espaço de produção de mercadorias
(sobretudo, bens materiais).
4 Aqui, a ideia de constelação sócio-histórica remete aos trabalhos de Max Weber (2001) e Norbert Elias (1994),
correspondendo basicamente ao sentido de que um determinado conjunto de eventos históricos pode ser pen-
sado enquanto uma “configuração” cujo estado resulta dos seus elementos integrantes (eventos) e das relações
que eles estabelecem entre si.
5 O termo “categoria nativa” aqui empregado diz respeito à diferenciação proposta por Pierre Bourdieu entre
categoria nativa e categoria analítica, sendo a primeira vinculada ao senso comum, ao conhecimento prático
“Economia criativa” como categoria nativa: a atuação dos economistas e as condições de legitimação de um
novo recurso de poder| Elder Maia Alves; Bruno Gontyjo do Couto
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engendradas em meio a outros critérios, interesses e usos. Essas categorias-
-força nasceram inclinadas a uma aplicação governamental e corporativa
prática, foram ajustadas às demandas das novas políticas de desenvolvi-
mento econômico elaboradas no âmbito do processo de consolidação das
sociedades pós-industriais de serviços e da economia do conhecimento.
Cada uma dessas categorias-força traz em si um sistema de interesses,
regimes de usos e uma teia institucional especíca. Com efeito, importa
muito menos localizar e explorar as propriedades analíticas, conceituais e
teóricas internas a cada uma dessas categorias, e muito mais descrever e
explicar o sistema de usos político-econômicos nos quais elas estão direta-
mente inscritas. Parte desse sistema de uso decorre do interesse que essas
categorias-forças despertaram junto à comunidade cientíca dos economis-
tas, administradores e teóricos das escolas de negócios, muitos dos quais se
especializaram no tema e instauraram esse debate em diversos lugares do
mundo ao longo das últimas duas décadas. Essas categorias-forças foram
cunhadas e/ou aprimoradas por um seleto grupo de economistas em es-
treita cooperação com governos nacionais, escolas de negócios e agências
transnacionais. Pertencem a esse grupo autores como Richard Chaves, Da-
vid orsby, John Howkins, Richard Florida, John Hartley, Paul Tolilla e
François Benhamou.
Para compreender como, por que e sob que condições esse seleto
grupo de economistas conquistou poder técnico-operacional e, por con-
seguinte, as categorias de indústrias criativas, economia criativa e cidades
criativas foram forjadas, legitimadas e aplicadas é preciso inseri-las em um
movimento sociológico mais abrangente, que passa, incontornavelmente,
por três caminhos: 1) o aumento da relevância econômica do setor de ser-
viços nas principais economias do mundo, especialmente os serviços de
informação, comunicação, educação, arte, entretenimento e cultura; 2) a
consolidação das chamadas economias do conhecimento e a centralidade
dos setores de serviços dedicados à pesquisa, inovação e à proteção da pro-
priedade intelectual; 3) a digitalização e expansão dos mercados culturais.
que é construído pelos membros de uma sociedade de forma espontânea, e a segunda vinculada ao conhe-
cimento científico, elaborado a partir do trabalho reflexivo, sistemático e submetido às regras da vigilância
epistemológica (BOURDIEU, 2001).
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