Economia internacional do saber e da pobreza: a exclusão dos países em desenvolvimento do mercado mundial de medicamentos

AutorThomas Bréger
Páginas135-188
ECONOMIA INTERNACIONAL DO SABER E DA POBREZA: A
EXCLUSÃO DOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO DO MERCADO
MUNDIAL DE MEDICAMENTOS(*)
INTERNATIONAL ECONOMY OF KNOWLEDGMENT
AND POVERTY: EXCLUSION OF DEVELOPMENT
COUNTRIES OF THE GLOBAL DRUG MARKET
Thomas Bréger(**)
RESUMO
A exemplo das relações econômicas internacionais, a saúde segue
o ritmo da mundialização. Fala-se, ao mesmo tempo, de uma economia
da saúde globalizada e da internacionalização dos riscos sanitários. No
entanto, os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento não
estão no mesmo nível em relação ao combate às doenças. Observa-se
uma “fratura sanitária” simbolizada, por anos a fio, pela epidemia da AIDS
nos países pobres. Enquanto o progresso científico oferece respostas a
numerosas doenças, a maioria dos habitantes dos países do “Sul” não
tem acesso regular a medicamentos. No centro das políticas de saúde
pública, o medicamento vem se tornando mercadoria, em uma economia
mundial focada na exploração do conhecimento, no caso a inovação
farmacêutica. A falta de acesso a tratamentos pode ser analisada como
resultado da exclusão dos países em desenvolvimento frente ao mercado
de produtos farmacêuticos, causada tanto pela situação socioeconômica,
quanto pela estrutura do mercado e pelas regras da OMC relativas à
propriedade intelectual.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 12, n. 1 p. 135-188 Mar./Jun. 2011
(*) Este artigo teve como base tese de doutorado em Direito Internacional Público “O acesso aos
países em desenvolvimento aos medicamentos, uma aposta na renovação das políticas de
desenvolvimento”. No original em francês “L’accès des pays en développement aux médicaments,
enjeu d’une rénovation des politiques de développement”. Faculdade de Direito e de Ciências
Políticas de Nantes, 29 de junho de 2010.
(**) Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito e Ciências Políticas de Nantes. Nantes/
França. E-mail: thomasbreger@yahoo.fr. Recebido em 18.11.10. Aprovado em 11.02.11.
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Palavras-chave:
Acordo TRIPS; Cooperação Internacional; Direito à Saúde; Medicamentos;
Propriedade Intelectual.
ABSTRACT
As international economic relations, health field follows the steps of the
globalization. People talks, at the same time, about a global health economy
and the internationalization of health risks. However, the developed countries and
those who are in development are not in the same level to fight against
diseases. There is a “health break” for many years symbolized by AIDS
epidemic in poor countries. While scientific progress provides answers to
several diseases, most of the inhabitants of the “South “ has no regular access
to medicines. At the heart of public health policies, the drug is becoming a
commodity in a global economy focused on the exploration of knowledge,
particularly the pharmaceutical innovation. The lack of access to treatment
can be analyzed as a result of the exclusion of developing countries facing
the pharmaceutical market, caused by socioeconomic status, by the structure
of the market and by WTO’s intellectual property rules.
Keywords
ADPIC; Drugs; Intellectual Property; International Cooperation; Right to
Health.
INTRODUÇÃO
Há mais de meio século, a situação sanitária mundial testemunha um
paradoxo apresentando, de um lado, avanços nos conhecimentos biológico
e científico das doenças e um ritmo acelerado de evolução científica e técnica e,
de outro, uma “fratura sanitária” crônica entre os doentes dos países ricos do
“Norte” e aqueles dos países em desenvolvimento e dos países menos
desenvolvidos. Os últimos anos vêm apresentando uma degradação da
situação sanitária de inúmeros países em desenvolvimento, que concentram
mais de 80% da população mundial. Uma das principais causas desta
degradação é a progressão fulgurante da AIDS e o recrudescimento de
doenças infecciosas como o paludismo e a tuberculose, que afetam
prioritariamente as populações do “mundo em desenvolvimento”. Desse
modo, 95% dos doentes de AIDS vivem nos países do “Sul”, sendo 70% no
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continente africano, onde a epidemia não parou de crescer ao longo dos
anos 1990. A epidemia de AIDS revelou à comunidade internacional uma
outra forma de iniquidade da saúde: o acesso aos medicamentos. Em 2000,
estimava-se que somente 5% dos pacientes nos países em desenvolvimento
tinham acesso aos tratamentos antirretrovirais(1). No final de 2007, em pouco
mais de seis anos, o número de pessoas beneficiadas por esta terapia, nestas
nações, multiplicou-se por 10. Apesar deste avanço, somente 31% dos
doentes têm acesso a este tipo de tratamento(2).
A propagação fulgurante da AIDS e a descoberta dos primeiros tratamentos
eficazes, em meados dos anos 1990, constituíram-se em elementos detonadores
de uma tomada de consciência sobre o fracasso mundial da desigualdade de
acesso a medicamentos em detrimento das populações dos países em
desenvolvimento e aqueles menos desenvolvidos, causadas principalmente
pelos preços elevados das primeiras triterapias comercializadas pelos
laboratórios farmacêuticos ocidentais(3). Desde o fim dos anos 1990, nações em
desenvolvimento e organizações não governamentais vêm denunciando o
acomodamento da comunidade internacional em face do que eles qualificam
de verdadeiro “apartheid da saúde”, organizado, ou ao menos agravado, pelas
evoluções recentes do mercado mundial de medicamentos dominado pelos
interesses privados das multinacionais farmacêuticas.
O medicamento tornou-se um bem de consumo e de troca como
qualquer outra mercadoria, comportando a hipótese da existência de um
“mercado internacional da saúde”? Pelas suas implicações sociais,
humanitárias, o medicamento não poderia ser considerado um objeto de
consumo ordinário. A virtude terapêutica do medicamento o coloca à parte da
categoria genérica de “mercadoria”, em razão, notadamente, de sua
contribuição potencial à realização de objetivos políticos de saúde pública e,
mais globalmente, à promoção da saúde como direito fundamental do homem(4).
(1) Dados da Organização Mundial de Saúde. Acesso equitativo aos medicamentos essenciais: o
quadro de ação coletiva (OMS, 2004), citados em GOLLOCK, Aboubakry. Les implications de
l’Accord de l’OMC sur les Aspects de Droits de Propriété Intellectuelle qui touchent au Commerce
(ADPIC) sur l’accès aux médicaments en Afrique subsaharienne. Tese, Economia: Université Pierre
Mendes France, Grenoble, 2008. p. 13.
(2) Cf. CONSELHO DOS DIREITOS DO HOMEM, Relatório do Relator especial. GROVER Anand. Sur
le droit qu’a toute personne de jouir du meilleur état de santé physique et mentale possible. Onzième
session du Conseil des Droits de l’Homme. UN Doc. A/HRC/11/12, le 31 mar. 2009. par. 14.
(3) Cf. OMS. Rapport de la Commission sur les Droits de Propriété intellectuelle: l’innovation. et la santé
publique. Santé publique, innovation et droits de propriété intellectuelle . Genève, avr. 2006. p. 119.
Disponível em:
Report.pdf>.
(4) Lembremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 dispõe no parágrafo 1º, art. 25,
que “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde [...]
inclusive alimentação, [...] cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”. Da mesma forma, o
Art. 12-2 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, afirma que o direito
à saúde implica no respeito ao direito de acesso às instalações, bens e serviços de saúde, incluindo o
tratamento apropriado de afecções que ocorrem na comunidade e o acesso aos medicamentos essenciais.
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