A Efetividade dos Direitos Sociais

AutorVicente Higino Neto
CargoAdvogado em Curitiba
Páginas14-19

Page 14

O artigo trata da eficácia e efetividade das normas constitucionais sobre os direitos sociais e o regime jurídico a eles aplicável e da possibilidade jurídica de se tornarem exigíveis perante o Poder Público e terceiros, aferindo ainda em que medida os intérpretes da Constituição, especialmente o Judiciário, estão a eles vinculados. Buscou-se fundamentar as conclusões em construções teóricas modernas sobre a efetividade da norma constitucional, partindo de uma hermenêutica constitucional solidário-inclusiva-emancipatória adequada ao século XXI.

1. Introdução

Provoca-se o leitor com o questionamento de Friederich Müeller1: "que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?" O artigo visa abordar se os direitos sociais são ou não justificáveis (exigíveis) perante o Poder Público ou perante terceiros. O tema tem relevância porque o Constituinte pátrio classificou os direitos sociais como direitos fundamentais.

É preciso advertir que o texto tem como "pano de fundo"as obras de Hannah Arendt, Peter Häberle, Gadamer, Karl Larenz, Michel Miaille, Dworkin, Canaris, Heidegger, dentre outros, justificando tais escolhas porque são autores que buscaram evidenciar as insuficiências do modelo cartesiano para as ciências sociais e mostrar quais são os fatores e valores que devem influenciar a hermenêutica jurídica no século XXI. Hannah Arendt2 há 30 anos já criticava as insuficiências do modelo cartesiano e seus nefastos efeitos para as ciências sociais, em especial para o direito.

Ao evidenciar os males do cartesianismo, onde a realidade - do mundo e da vida humana - é posta em dúvida, destaca: "se já não podemos confiar nos sentidos, nem no senso comum, nem na razão, então é possível que tudo o que julgamos ser realidade não passe de um sonho". Para Hannah, a "consumada perversidade desse mau espírito consiste em haver criado um ser dotado da noção de verdade, apenas para conferir-lhe outras faculdades tais que ele jamais poderia alcançar qualquer verdade, jamais será capaz de estar certo de coisa alguma". Toda a visão sonhada pelo cartesianismo, observa Hannah, "...não passa de um mundo onírico, no qual toda a visão sonhada que o próprio homem produz tem caráter de realidade somente enquanto dura o sonho".

A crítica realizada por esses autores permitiu e está a permitir aferir que os operadores do direito, em especial os juízes, estão legitimados a percorrer a via hermenêutica para concretizar o direito e torná-lo mais rente à vida, sem descurar da cientificidade do direito, cientificidade, porém, extraída de um outro paradigma, um paradigma relativista, mais impreciso, mas que busca dar conta da complexidade da sociedade do século XXI e que enxerga a realidade (apreensível) por todos os seus prismas, sem ocultar as forças e o Poder que orienta as normas jurídicas e o conflito latente entre essas forças e a Constituição.

2. A hermenêutica solidário-inclusiva do século XXI

A hermenêutica do século XXI deve ser uma hermenêutica inclusiva que integre e outorgue às classes menos favorecidas o direito de morar, comer, estudar, ter saúde, enfim, de viver. Não é possível mais conceber que com tanto progresso a maioria da população mundial não tenha acesso ao mínimo essencial a uma existência digna. É preciso reconhecer que o direito pode fazer algo; pode, através de uma adequada aplicação da Constituição, especialmente a partir dos direitos fundamentais, resgatar as promessas da modernidade e fazer realidade o princípio da solidariedade. A solidariedade não representa altruísmo, mas condição de um viver melhor da humanidade, conforme nos ensina Carducci3.

Uma hermenêutica constitucionalmente adequada, realizada por toda a sociedade (Peter Häberle4), deve partir de uma teoria da interpretação democrática, com um cidadão ativo e a potencialização de todas as forças da sociedade e não apenas dos operadores do direito. Direito Constitucional, para Häberle, é um direito de conflito e de compromisso. Em suas considerações preliminares sobre o método hermenêutico, ensina Häberle que deve-se partir de uma perspectiva sócio-constitucional, conseqüência do conceito "republicano", ou seja, se o Brasil é uma res publica, o método deve considerar como marco fundamental que todas as forças da comunidade política estão aptas a opinar no processo hermenêutico como fornecedores de alternativas. Geraldo Ataliba também considera que o princípio republicano é o princípio básico do direito brasileiro5. A legitimação dessa hermenêutica, do ponto de vista da teoria do direito, da teoria da norma e da teoria da interpretação, considera, portanto, que ela é um processo aberto; logo, não é um processo de passiva submissão, tampouco se confunde com a recepção de uma ordem. A interpretação, para Häberle, conhece possibilidades e alternativas diversas. A vinculação se converte em liberdade na medida que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia da subsunção. A ampliação do círculo dos intérpretes, sustentada pelo autor, é apenas conseqüência da necessidade da integração da realidade ao processo de interpretação, realidade esta ignorada pelos operadores do direito até há pouco e felizmente resgatada - ainda que timidamente - dada a assimetria a que se chegou entre o direito e a vida: a vida do homem de carne e osso, de espírito, sentimentos, necessidades, angústias etc.; a vida do homem que quer se libertar das contingências da mundanidade (acesso a bens básicos à garantia do mínimo existencial) e que o oprimem a expressar o Ser (a potencialidade de sua individualidade).

Feitas tais considerações, o exame da efetividade dos direitos sociais passa necessariamente pela classificação de José Afonso da Silva quanto à aplicabilidade das normas constitucionais, bem como na de João Horácio Meirelles Teixeira ou na de Luis Roberto Barroso.

Ultrapassada essa questão prévia, verificar-se-á a classificação dos direitos sociais como direitos fundamentais e sua diferenciação em relação aos direitos humanos.

3. A aplicabilidade das normas constitucionais e os direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, conforme dito anteriormente, têm eficácia irradiante sobre todo o sistema jurídico (Canaris), constitucionalizando a ordem jurídica a partir deles, tendo o Estado (Constituição Dirigente - Canotilho) o permanente dever de protegê-los. O Estado os cumpre assegurando instrumentos de participação da sociedade na implementação da garantia desses direitos. Ex.: A Constituição Federal cria órgãos e procedimentos (SUS, Conselhos Tutelares, Conselho Penitenciário Orçamento Participativo etc.)6.

A eficácia jurídica é representada pela possibilidade de qualquer norma jurídica gerar efeitos. A aplicabilidade, por sua vez, é a possibilidade de adaptação da norma jurídica eficaz aos casos concretos. Já a efetividade significa a concreta realização dos efeitos jurídicos no plano dos fatos.

Page 15

Todas as normas jurídicas, inclusive as constitucionais, têm eficácia jurídica, regulamentadas ou não. A eficácia, no entanto, não é igual para todas as normas jurídicas. Há, portanto, diferentes cargas eficaciais das normas jurídicas. Todas as normas são diretamente aplicáveis: sejam as de eficácia plena, as de eficácia contida e as de eficácia limitada, conforme clássica classificação de José Afonso da Silva. As de eficácia contida têm a mesma aplicabilidade das de eficácia plena, sendo sua restringibilidade diferenciada em razão dos parâmetros definidos pela própria Constituição Federal (norma sobre expressa reserva legal). Somente o legislador, por lei formal, pode restringí-la.

As de eficácia limitada também são diretamente aplicáveis, pois no mínimo o legislador não as pode contrariar, podendo inclusive o juiz/intérprete declarar a inconstitucionalidade de uma lei que contrasta com uma norma constitucional de eficácia limitada. Só será limitada a norma constitucional para os efeitos que depende de lei; não o dependendo, será de eficácia plena.

Para se identificar se uma norma é de eficácia plena ou não, temos que verificar se há necessidade de mediação legislativa. Exemplo de norma de eficácia contida: é livre o exercício de qualquer profissão, nos termos da lei; liberdade de comunicação, nos termos da lei;..., salvo... Exemplo de norma de eficácia limitada: proteção contra automação, nos termos da lei...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT