Os Elementos Indiciários como Forma Jurídica de uma Desconstrução do Mito da Verdade Real no Processo Penal

AutorFabiano Kingeski Clementel
CargoAdvogado/RS. Mestrando e especialista em Ciências Criminais (PUC/RS)
Páginas12-17

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1. Considerações iniciais

O presente artigo traz no seu bojo a necessária análise do processo penal numa perspectiva transdisciplinar, com digressões, na seara filosófica1, sobre a lógica indiciária relativamente à construção de verdades e certezas de fatos no processo penal, somando-se à dúvida sobre as presunções e os indícios como meio ou tipo de provas vertidas sob o pálio de formas jurídicas legítimas de construção de verdades.

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Pretende-se definir a impossibilidade de se alcançar uma verdade real no processo penal, especificamente como fruto da prova indiciária. Equivocada, nesse sentido, a concepção de que “a função punitiva do Estado, prelecionada por Fenech, só pode fazer-se valer em face daquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material como fundamento da sentença”2. Certo é que tão somente o autor do delito deve ser responsabilizado, contudo incorreta é a concepção de que o processo penal visa a busca por uma verdade dita real.

Nesse sentido, buscar-se-á demonstrar que a tão sonhada – por muitos incautos, outros nem tanto – verdade real é mitológica. É resquício da inquisição. Por isso, é impossível se pensar em verdade real ou absoluta3 como corolário de indícios em matéria processual penal. Tentaremos nos ater aos elementos indiciários (prova indiciária) como constructo de uma lógica informal ou argumentativa, calcada na utilização de elementos da retórica, na busca sim do convencimento persuasivo do juiz (auditório interlocutor) e não por um desvelar da inalcançável verdade substancial.

2. Por que “prova” indiciária e para quê(m)?

Ubi societas, ibi jus. Já rezava o provérbio latino que “onde está (há) a sociedade, está (há) o Direito”. É nesse singular que o Direito vem a se afirmar e regular, no seu aspecto concreto e dinâmico, as situações fáticas (re)correntes.

A cada relação jurídica (material) concretizada surgem novas situações fático-jurídicas, que, por vezes, trazem contradições e divergências dentre os agentes relacionados à questão judicial.

Modernamente, em matéria criminal e especificamente com o processo penal visto como um jogo de crença (crer=fé) na segurança jurídica, mas em sua essência como “um instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico4, o sujeito que pretender realizar, manter ou restabelecer um direito violado ou ameaçado terá que, via de regra, processualmente, provar demonstrativa e argumentativamente5 (carga para o acusador e risco para a defesa6) os fatos, cônscio de que esse processo de reconstrução do fato passado (crime) por meio de provas visa tão somente instruir o julgador na sua atividade de recognição7. Pode-se pensar que é dessa conjugação que o magistrado externará sua sentença, diga-se justa ou injusta, mas dentro dos parâmetros apresentados no processo em concreto. Desse processo de recognição o juiz criminal é restituído a sua própria consciência8, enquanto que os atores do processo buscam, em “atrativos probatórios”, a sua captura psíquica ou seu convencimento psicológico. Restituído a sua consciência, como dito, o juiz criminal, indelegavelmente vai sentir. Ele julga sentindo, e sentindo com toda sua carga de emoção9.

Como resume Aury Lopes Jr.:

“... processo penal tem uma finalidade retrospectiva, onde, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato, legitimará o poder contido na sentença.”10

No arcabouço deste breviário intróito insere-se a “prova” indiciária. Se a classificação das provas como direta e indireta perdeu sua razão de existir a partir do instante em que admitimos que as provas “consistem em signos do suposto fato”, ou seja, signos do fato que se quer conhecer, uma relação semiótica configurável de diversos modos, em que da correspondente análise surge a mais útil das possíveis classificações11, os indícios não podem mais ser considerados como provas, uma vez que não dizem direta ou indiretamente com o fato. Apenas na via oblíqua.

É que, juridicamente, a prova consiste na demonstração12 de existência ou da veracidade daquilo que se alega como fundamento do direito que se defende ou que se contesta13.

Como já referimos (nota de rodapé 7), as provas, para o juiz, são sempre indiretas. Se os indícios não dizem ao fato histórico14 (crime), porque partem de dados e circunstâncias conhecidas (não criminosas ou até incrimináveis por outros motivos) para fatos desconhecidos (tido como incrimináveis), não podem ser admitidos como provas. Se admitidos forem, terão por ratificar e complementar o primado dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoidi15, porquanto os indícios, seletivamente, serão eminentemente direcionados (positiva ou negativamente, dependendo do ponto de vista – lado em que se está), o que é inconcebível dentro do defendido sistema acusatório.

Com efeito, os indícios, na etimologia do processo penal, receberiam melhor adesão se encarados como “fios condutores” de um “habitus argumentativo”, não como provas conjecturais ou indiretas. A expressão que melhor explicaria os indícios, a nosso sentir, seria “elementos indiciários”, pelas razões que explicamos no subtítulo a seguir.

Na linha do que já referimos nos parágrafos anteriores, os indícios servem, em síntese, no processo penal, para a captura psíquica do juiz, e, no jogo processual, para convencê-lo de que os elementos trazidos ao processo pelo orador16 – endereçados ao seu interlocutor (auditório=juiz)17 – são os que expressam mais claramente o fato histórico, fato esse despido da racionalidade cartesiana, moderna, de busca por uma verdade real absoluta como “telos” da ciência do direito processual penal18. Nesse sentido, resta claro que a interação entre o orador e seu auditório é essencial para o desenvolvimento de toda argumentação.

2.1. Natureza jurídica dos elementos indiciários

Indício é todo fato que está em relação tão íntima com outro fato de forma a permitir ilações sobre o que não foi possível visualizar em uma percepção direta. É todo rastro, vestígio, pegada, circunstância e, em geral, todo fato conhecido, ou, devidamente comprovado, suscetível de levar-nos, por via de inferência, ao conhecimento de outros fatos desconhecidos19.

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Walter Coelho classifica os indícios como prova indireta20, opinião com a qual não concordamos, porque “não há como confundir indícios com provas (ainda que toda prova seja um indício do que ocorreu) (...) ninguém pode ser condenado a partir de meros indícios, senão que a presunção de inocência exige prova robusta para um decreto condenatório”21.

Os indícios, por não se apresentarem diretamente ligados ao factum probandum, não podem ser contemplados na tipologia das provas, não obstante a previsão expressão no Código de Processo Penal22. São, no máximo, conjecturas hipotéticas que podem, por meio de uma lógica argumentativa, auxiliar na comprovação (convencimento por persuasão racional23) – e não demonstração – de outra circunstância fática. A diferença entre indícios e provas, nesse sentido, tem a ver com o menor ou maior grau de confiabilidade que os elementos de informação ofereçam ao juiz24, contudo não se confundindo os primeiros com presunção25, tampouco com busca por certeza processual, que, à luz da epistemologia da incerteza que marca a atividade processual – em que pese a explanação de Marcos Alexandre Coelho Zilli no sentido de que certeza processual configura um estado de espírito representado pela ‘segurança subjetiva da verdade de um conhecimento’ ou mesmo pela garantia que um conhecimento oferece de sua verdade26 – não existe.

Com efeito, os indícios podem ser considerados como formas jurídicas legitimadas pelo sistema processual – dentro da estrutura de inquérito27 e processo historicamente construído, na relação de saber-poder – no sentido de auxiliar o orador na construção (discurso) do (seu) fato histórico (crime), com vista à captura psicológica do seu auditório (juiz). Não se busca, portanto, uma construção do fato/realidade único(a) – se é que é possível admitir sua existência – como verdade absoluta, mas, quiçá, uma (re)construção da realidade.

2.2. Os elementos indiciários como formas jurídicas (i)legítimas

Como já explanamos (nota de rodapé nº 21), o Código de Processo Penal brasileiro traz suas considerações sobre o que pode ser entendido como indício. Da leitura do referido artigo, exsurgem elementos normativos importantíssimos de serem vislumbrados, decorrentes da ligação entre a circunstância conhecida e provada, que se relaciona ao fato histórico (crime) por indução, concluindo a existência de outras circunstâncias. É dizer: a referida regra processual vai levar sempre a circunstâncias e não ao fato histórico. São circunstâncias que desencadeiam buscas por circunstâncias. Numa cadeia de circunstâncias, dentre as várias possibilidades, uma(s) pode(m) ser escolhida(s). Por óbvio, a que de melhor alvitre para o “buscador”. Mais uma razão para não ser considerada como prova.

O importante, neste tópico, é argumentar no sentido de que, conquanto o CPP contemple dita regra, legitimando os indícios como forma jurídica de se “provar” os fatos – dentro da estrutura de inquérito e processo penal vigente, realçando a questão metodológica como fundamental –, o desencadear (i)lógico vai alcançar seu...

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