Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo?/Ellwanger and the transformations of the Supreme Federal Court: a new beginning?

AutorArguelhes, Diego Werneck

Min. Ayres Britto: "Como diria Camões, redivivo: 'cessa tudo que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta'." Min. Nelson Jobim: "Camões não conhecia Processo Penal." (trechos de debates no HC 82.424--caso "Ellwanger") 1. Introdução (*)

No dia 5 de outubro de 1988, meia hora antes de sua promulgação oficial, a nova Constituição brasileira garantiu a liberdade de Manoel Fernandes. Fernandes havia sido "preso para averiguações"--prática policial consistente em prender e manter presas, sem autorização judicial e fora do contexto de um flagrante, pessoas consideradas "suspeitas". A "prisão para averiguação" era prática até então normal, mas, segundo a nova Constituição, "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (...)". (1) A incidência da nova regra seria tão evidente que, segundo o advogado de Fernandes, sua mera presença na delegacia teria feito os policiais liberarem seu cliente: "todo mundo já está sabendo que esse tipo de prisão é ilegal". (2) A nova ordem constitucional parecia ter chegado de maneira clara, imediata e inequívoca. Contudo, o caso de Fernandes não é representativo. Especialmente com relação a direitos fundamentais, a implementação da nova Constituição parece ter sido deliberadamente atrasada, em vários casos, a partir de intervenções e omissões do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição criou ampliados mecanismos de controle do poder político e de proteção a direitos fundamentais. Esses dispositivos desenhavam um tribunal ativo--no enfrentamento de questões da ordem do dia da política nacional; no processo de filtragem do conteúdo autoritário da legislação do regime militar; e, também, na proteção de direitos fundamentais. Ao longo dos anos 90, porém, o STF foi no geral tímido em todas essas dimensões. Com exceção de reformas que envolviam servidores públicos e o sistema de justiça, confrontos diretos com o governo federal eram raros. E, com exceção da esfera penal, o tribunal foi pouco ativo em discussões sobre direitos fundamentais, em especial de grupos vulneráveis. Essa contenção relativa se expressava em múltiplos níveis--no resultado das decisões do tribunal, na leitura restritiva que os ministros faziam de muitos dos seus novos poderes, e no adiamento de temas potencialmente delicados. (3) Diante de uma Constituição que configurava e exigia um tribunal constitucional ativo, o Supremo hesitou. Construiu, ao longo dos anos 90, seu próprio script sobre quais seriam seus poderes, contrariando as expectativas de constituintes e da comunidade jurídica e o próprio texto constitucional.

Nesse período, no discurso sobre o seu papel, o STF contrastava com outros tribunais em democracias recentes no mesmo período. Em países como Colômbia (Cepeda-Espinosa, 2004), Hungria (Dupré, 2003), Polônia (Sadurski, 2001) e ?frica do Sul (Klug, 2000), o alinhamento entre uma nova Constituição e um novo regime político foi deliberadamente enfatizado pelo tribunal para anunciar uma nova era jurisprudencial. (4) Esses tribunais se apresentaram publicamente como instituições especializadas na proteção de direitos fundamentais, com reflexos na pauta que escolheram para si e nas ideias com que justificavam sua atuação. Inseriam-se em uma narrativa mais ampla, que se espalhava entre juízes e juristas pelo mundo, segundo a qual tribunais constitucionais fortes resultariam de lições e decisões do pós-guerra quanto aos limites da democracia majoritária. (5)

No seu ritmo, o Supremo eventualmente mudou. Na terceira década da Constituição, ainda que se mantenha tímido ou silencioso em certos temas e momentos, o tribunal mudou completamente a chave de interpretação do seu papel. Se o STF dos anos 90 inventava limites onde os constituintes não os tinham criado, o tribunal de hoje parece sempre disposto a ampliar as fronteiras de sua atuação. (6) Essa mudança se operou também no nível das ideias. O STF hoje se insere na narrativa global típica de tribunais constitucionais. Segundo o site do tribunal, sua "missão" institucional é "velar pela integridade dos direitos fundamentais", "conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, "fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a injustas perseguições e a práticas discriminatórias." (7) Essas ideias tinham reduzido espaço na pauta e no discurso do tribunal nos anos 90.

Entre esses dois Supremos distintos em comportamento e discurso, o ano de 2003 foi uma confluência de transformações. Primeiro, consolida-se a TV Justiça, criada em agosto de 2002, expondo ao vivo a interação entre ministros e ministras do STF. Segundo, ocorre a primeira efetiva alternância eleitoral de poder na democracia brasileira pós-88, com Fernando Henrique Cardoso transferindo a faixa presidencial para Luiz Inácio Lula da Silva. Terceiro, a mudança geracional em curso na composição do STF dá um salto com a aposentadoria, em 2002 e 2003, dos últimos três ministros indicados pela ditadura militar--Néri da Silveira, Sydney Sanches e José Carlos Moreira Alves. Ingressam em seu lugar ministros que, com diferentes perfis, já haviam desenvolvido suas carreiras sob a Constituição de 1988.

Nesse ano de transformações, o STF decidiu o HC 82.424, o caso Ellwanger. Na formulação do relator original do caso, ministro Moreira Alves, o caso envolveria apenas saber se, pelo texto da Constituição, a discriminação contra judeus seria "prática de racismo". Ao longo do julgamento, porém, Ellwanger se tornou algo maior--jurídica, política e simbolicamente. Neste trabalho, procuro reconstruir Ellwanger como um momento de anunciação, no STF, do discurso legitimador de tribunais constitucionais como instituições desenhadas para limitar maiorias legislativas e proteger direitos fundamentais no contexto do pós-guerra. Até ali, o tribunal não se aproveitara do potencial ganho de legitimidade do "novo começo constitucional" de 1988. Ellwanger é o ponto de virada na dimensão narrativa --isto é, não quanto a como o STF de fato se comporta, mas a como o tribunal fala sobre o seu próprio poder e o seu papel. Ao longo do julgamento, ministros descrevem o tribunal como representante local de uma tarefa global: a contenção de maiorias que, por ação ou omissão, violariam direitos fundamentais de indivíduos ou grupos politicamente vulneráveis. Com o voto de Celso de Mello traçando a diferença entre o STF "velho" e a "nova" lógica, Ellwanger é a nova chance de um novo começo--no discurso, ainda que não necessariamente na prática--do STF como protetor de direitos fundamentais.

A literatura tem enfocado Ellwanger primariamente do ponto de vista metodológico. Diversos ministros construíram seus votos em termos de um conflito constitucional de princípios (entre liberdade de expressão e dignidade humana ou igualdade), e não apenas de interpretação dos termos de uma regra (no caso, o alcance da expressão "racismo"). (8) A ideia de que aplicar direitos fundamentais previstos na Constituição envolveria resolver uma colisão entre princípios era relativamente recente na jurisprudência do STF naquele período. No início da década de 2000, textos acadêmicos no Brasil começaram a apresentar, de maneira integrada, a dimensão metodológica e o que chamo aqui de dimensão narrativa--como se a tarefa de proteção de direitos fundamentais de grupos vulneráveis exigisse ou implicasse logicamente a adoção de determinadas metodologias de decisão baseadas em princípios ou em colisão de direitos fundamentais. (9) Contudo, as duas dimensões não têm relação necessária entre si. De fato, ao longo do julgamento de Ellwanger, o "novo" ponto de vista metodológico (centrado em conflitos de princípios) aparece, em vários votos, de forma independente da "nova" narrativa. No próprio julgamento, porém, é possível ver a ponte entre as duas dimensões sendo construída em tempo real. Mesmo que não tenham relação necessária, a combinação das duas dimensões, metodológica e narrativa, é fundamental para compreender o percurso do tribunal. O foco deste trabalho, porém, está na dimensão narrativa.

Ellwanger já foi apontado como "ponto de inflexão" da influência de Moreira Alves, líder de uma concepção mais "contida" da atuação do STF (Recondo e Weber, 2019; Kaufmann, 2019). (10) Proponho interpretação mais abrangente, e mais específica. Ellwanger expressa transformações de concepções do papel do STF na democracia brasileira. No eixo dessas mudanças, o caso revela tentativa inédita e deliberada de alinhamento com discursos globais de legitimidade de tribunais constitucionais centrados na proteção a direitos fundamentais. A mudança no discurso, evidentemente, não tem relação necessária com a prática do tribunal dali em diante. Mas ajudar a revelar a identidade do tribunal passado--um STF isolado discursivamente de narrativas globais, trilhando um percurso em que direitos fundamentais eram secundários na prática e no discurso.

O restante desse trabalho está organizado da seguinte forma. A seção 2 discute o "velho" STF, que, em contraste com as expectativas em torno da própria Constituição, mostrava baixa disposição para atuar sobre (e se legitimar por) o que consideraríamos hoje uma pauta de direitos fundamentais. A seção 3 analisa o caso Ellwanger, do percurso judicial feito pelo réu nos anos 90 até o processo decisório no STF. A reconstrução dos votos mostra a progressiva articulação da ideia de que o tribunal tem como tarefa central a proteção a direitos fundamentais de minorias vulneráveis, inserindo o tribunal em uma narrativa global. A seção 4 contrasta essa narrativa com o discurso dos ministros que estavam no tribunal nos anos 90. A ideia do STF como um "tribunal de direitos fundamentais", voltado para a proteção de grupos vulneráveis, pode parecer banal ou evidente nos dias de hoje. Mas não era nenhuma das duas coisas nos anos 90. Esse discurso, hoje disseminado, não era visível na década anterior a Ellwanger. O julgamento...

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