Em busca de um paradigma: o debate escandinavo sobre a identidade da sociologia do direito/In search of a paradigm: the Scandinavian debate on the identity of sociology of law.

AutorKonzen, Lucas P.

1 Introdução (1)

Este artigo analisa o debate entre Reza Banakar (1959-2020), Thomas Mathiesen (1933-2021) e Håkan Hydén sobre a identidade da sociologia do direito no contexto da Escandinávia de fins do século XX. À época do debate, Banakar, iraniano radicado no Reino Unido e na Suécia, atuava como pesquisador do Centro de Estudos Sociojurídicos da Universidade de Oxford; nos anos seguintes, se notabilizaria por seus trabalhos sobre os fundamentos da pesquisa sociojurídica (2000, 2003). Mathiesen, então catedrático de sociologia do direito na Universidade de Oslo, já era um intelectual internacionalmente consagrado por suas contribuições à criminologia crítica e ao movimento pela abolição da pena de prisão (1974, 1990). Hydén, professor titular na Universidade de Lund, lançava as bases teóricas de uma ciência das normas societais, que logo influenciaria dezenas de estudos sociojurídicos (2011, HYDÉN; SVENSSON, 2008).

O debate desenvolve-se em uma sequência de artigos publicados na Retfærd: Nordisk juridisk tidsskrift entre 1998 e 2001. Esse periódico fundado na Dinamarca, em 1976, com o propósito de difundir o pensamento jurídico crítico, veicula artigos nos idiomas escandinavos e em inglês. Banakar (1998) inaugura o debate com The identity crisis of a "stepchild": reflections on the paradigmatic deficiencies of sociology of law. A convite dos editores, Mathiesen (1998) escreve uma resposta, Is it all that bad to be a stepchild? Comments on the state of sociology of law. Também estimulado pelo corpo editorial, Hydén (1999) publica Even a stepchild eventually grows up: on the identity of sociology of law. O debate encerra-se com A passage to "India": toward a transformative interdisciplinary discourse on law and society, em que Banakar (2001) dialoga com os aportes anteriores.

A questão do status epistemológico da sociologia do direito perpassa a história do pensamento jurídico e continua a suscitar polêmica. No entanto, a controvérsia examinada diferencia-se dos debates clássicos sobre essa problemática porque se deu posteriormente à institucionalização da sociologia do direito como especialidade científica. (2) Considerando o debate escandinavo, a posição predominante na comunidade sociojurídica em meados do século XX, favorável à coexistência dos estudos sociojurídicos com os estudos doutrinários em um esquema de divisão do trabalho científico, continua prevalecendo? O que significa conduzir pesquisa científica para os sociólogos do direito da Escandinávia, atualmente?

O objetivo desse artigo, assim, é compreender as convergências e divergências entre as perspectivas de Banakar, Mathiesen e Hydén sobre a identidade da sociologia do direito. Como se verá, a análise das posições defendidas no debate escandinavo pode lançar luzes sobre os elementos basilares que conformam o paradigma sociojurídico nos diferentes contextos em que a sociologia do direito também já se consolidou como uma especialidade científica, como o brasileiro.

A pesquisa bibliográfica realizada, centrada no exame do conjunto de artigos da Retfærd, (3) procurou abarcar fontes de informação que permitissem situar esse debate considerando as especificidades da trajetória da sociologia do direito na Escandinávia. (4) A análise desenvolvida tem por base a teoria dos paradigmas científicos de Thomas Kuhn (1970), há muito utilizada para compreender sociologicamente a pesquisa científica sobre o direito. (5) Inclusive, ao longo do debate escandinavo, é feita referência explícita ao conceito de paradigma de Kuhn. Prioriza-se nessa análise as percepções desses sociólogos do direito sobre o conteúdo do paradigma compartilhado pela comunidade científica de que fazem a parte.

O artigo está dividido em duas seções. Inicialmente, são narradas as condições em que se deu a institucionalização da sociologia do direito na Escandinávia, a fim de mostrar como esse processo levou à ruptura com o paradigma dogmático e à busca por outro paradigma para guiar a pesquisa científica sobre o direito. Na sequência, são analisadas as posições defendidas por Banakar, Mathiesen e Hydén nas páginas da Retfærd, os quais propõem soluções bem diferentes para o problema da identidade da sociologia do direito.

2 Os estudos sociojurídicos na Escandinávia

As portas das universidades escandinavas abriram-se para a sociologia do direito entre as décadas de 1960 e 1970 (HYDÉN, 1986: 133). Uma forma de contar essa história é enfatizar os antecedentes que favoreceram a institucionalização dos estudos sociojurídicos, como o legado do realismo jurídico e a introdução da sociologia geral no ambiente universitário. Porém, essa retrospectiva histórica ficaria incompleta se negligenciada a agência dos sociólogos do direito que vislumbraram a oportunidade de pôr em marcha uma agenda de pesquisa sobre as funções do direito na sociedade em um momento de apogeu do Estado social.

2.1 O legado do realismo jurídico e a introdução da sociologia

Suécia, Dinamarca e Noruega são países unidos pela proximidade geográfica e histórico-cultural. Na segunda metade do século XIX, já haviam se convertido em monarquias constitucionais parlamentaristas. A consolidação do Estado liberal favoreceu a inserção da Escandinávia, uma região com longa tradição na navegação mercantil e rica em recursos naturais como minério de ferro, madeira e potenciais hídricos, no livre-comércio marítimo predominante na Europa. Com o surgimento de empresas capitalistas como madeireiras e siderúrgicas, disseminou-se o trabalho assalariado; em paralelo, investimentos em infraestrutura energética, de transporte e comunicações alavancaram a exportação de bens manufaturados. Quem deixava o campo em busca de melhores condições de vida migrava para centros portuários, comerciais e industriais como Copenhague, Estocolmo e Oslo ou embarcava em um transatlântico em direção aos Estados Unidos. (6)

Em meio a essas transformações, as tradicionais faculdades de direito das cidades universitárias de Uppsala e Lund tiveram de se modernizar, a fim de cumprir a missão de preparar estudantes provenientes das classes sociais mais abastadas para os quadros da burocracia judicial e administrativa. Sob a influência das ideias da Escola Histórica alemã, muitos professores assumiram a condição de cientistas do direito, encarregando-se da tarefa de descrever a ordem jurídica vigente em seus países por meio de estudos doutrinários, conforme os ditames da dogmática jurídica. (7) Nessa tarefa, desenvolviam sistemas conceituais lógico-formais para guiar as operações de aplicação do direito positivo aos casos concretos submetidos à decisão das autoridades estatais, visando racionalizar o trabalho dos juristas práticos em atenção às exigências do ideal de neutralização política da magistratura. (8) Em princípios do século XX, embora ainda persistissem resquícios de um pensamento jusnaturalista em franco declínio, o juspositivismo estava firmemente estabelecido nas faculdades de direito dos países escandinavos (ECKHOFF, 1968: 22).

Porém, os conflitos e contradições próprios ao capitalismo industrial não tardaram a recrudescer, levando à articulação de sindicatos e partidos políticos representativos dos trabalhadores, como o Partido Social-democrata Sueco, fundado em 1889. Tal como em outras organizações de esquerda europeias, travou-se no âmbito desse partido um embate entre os defensores da implementação de reformas sociais a partir da conquista do poder pela via eleitoral e os favoráveis à tomada o poder pela revolução socialista. (9) Com a Revolução Bolchevique de 1917, a cisão tornou-se irremediável; ao se distanciarem do leninismo, os social-democratas suecos apostaram em uma política pragmática de negociação e formação de coalizações com outras agremiações partidárias. Com a universalização do sufrágio, o Partido Social-democrata Sueco ampliou a sua base eleitoral e fortaleceu sua presença no parlamento, conseguindo chegar ao governo. (10)

Em meio à crise do modelo de Estado liberal que caracterizou o período entreguerras, articulou-se uma escola de pensamento que abalaria os alicerces do juspositivismo: o realismo jurídico escandinavo. O filósofo sueco Axel Hägerström (1868-1939), um crítico da metafísica que permeia os conceitos jurídicos desconectados do tempo e do espaço, é considerado o inspirador dessa escola. (11) Foram seus alunos na Universidade de Uppsala os mais destacados nomes do realismo jurídico escandinavo, os suecos Vilhelm Lundstedt (1882-1955) e Karl Olivecrona (1897-1980) e o dinamarquês Alf Ross (1889-1979). Não cabe aqui discutir em detalhe as ideias de cada um desses juristas realistas, nem as afinidades entre as suas atitudes epistemológicas e as posturas de seus homólogos estadunidenses, (12) mas apenas rememorar o legado dessa corrente de pensamento para os estudos sociojurídicos.

Os realistas escandinavos estavam interessados em compreender as origens sociais do direito e seus efeitos na sociedade. Lundstedt (1933), docente em Uppsala, insurgia-se contra as doutrinas jurídicas dominantes, que lhe pareciam desprovidas de qualquer valor científico, pois fundadas na idealização de um "mundo do direito" apartado da vida social. Na sua visão, teorias emergentes como a de Kelsen contribuíam para agravar essa situação, pois quanto maior a coerência de uma doutrina metafísica, maior seu distanciamento da realidade (LUNDSTEDT, 1933: 327). Contra o pensamento metafísico da ciência jurídica, ele propugnava a busca pela verdade, com base em evidências, sobre o impacto das normas nas ações humanas. Para Olivecrona (1939), professor em Lund, era preciso entender as razões da crença na força obrigatória das normas jurídicas, isto é, as diversas motivações das pessoas de carne e osso para obedecêlas, para além da preocupação de incorrer em sanções ou de ter de lidar com outras consequências desagradáveis de uma transgressão.

Conhecendo a realidade, os juristas poderiam incorporar ao seu repertório argumentativo apreciações...

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