Em que se pode reconhecer a alteridade? Pol

AutorMendes, Alexandre Fabiano

Introdução

Este artigo promove uma interrogação interdisciplinar sobre algumas tendências atuais relacionadas ao uso dos conceitos de narratividade e alteridade, tendo como pano de fundo aproximativo o debate norte-americano dos anos 1980, ainda que não exclusivamente--essas tendências serão delimitadas, em detalhes, a seguir. Problematiza especificamente como o deslocamento do campo político pela e para a dimensão narrativa implicou uma reorganização da representação em torno da produção de um modelo de polêmica ou de guerras em diversos níveis--culturais, narrativas e de cânones.

Essa problematização se relaciona com uma dupla hipótese, que deriva dos usos pragmáticos das noções de ação política e de alteridade no âmbito de movimentos sociais catalisados por identidades--a exemplo dos movimentos de gênero, raça, identidade sexual etc. Neles, é comum que ao mesmo tempo em que a ação política pareça reduzir-se à sua dimensão narrativa (na qual agir e falar politicamente se equivalem), a noção de alteridade também parece se fechar sob formas de identidade que, colocadas em disputa linguística e subsumidas à hierarquizações situacionais, têm sua multiplicidade reduzida a binarismos de tipo fixo e projetivo.

Nosso argumento é o de que não apenas essas duas dimensões, da narratividade e da alteridade reduzida a formações identitárias em oposição, se interceptam e se retroalimentam em um contexto polêmico das guerras culturais ou narrativas, mas que essa dinâmica representativa e linguística que absorve o político impõe aos movimentos sociais um paradoxo no nível do discurso, e um impasse no nível da ação. Não se trata apenas de uma incompatibilidade entre o que se diz e o que se faz, mas da efetiva absorção do agir pelo falar e das multiplicidades pela forma do "mesmo".

Essa dupla hipótese é submetida a um diálogo com autores e autoras que, por um lado, permitem apreender a questão a partir de um recorte histórico e cultural privilegiado (Peters, Hunter, Foucault, Deleuze e Guattari), bem como de autores e autoras que lançaram alguns dos mais importantes fundamentos para as mobilizações identitárias e sua construção crítica interna (o que chamamos aqui, resumidamente, de gender, queer, postcolonial e subaltern studies).

Para tanto, buscamos reconstruir algumas das principais chaves conceituais que parecem recomendar usos pragmáticos bastante divergentes tanto das identidades (materiais provisionais para reconversões subjetivas) como da noção mesma de alteridade (irredutível a qualquer das formas da identidade). Esse diálogo permitirá reposicionar os movimentos sociais identitários, suas noções de narratividade e alteridade, seus paradoxos e seus impasses, em um campo mais abrangente de apreensão dos critical studies, sugerindo novas agendas de investigação que considerem além da interseccionalidade, as relações potenciais transversais entre os movimentos; além da alteridade das identidades minoritárias, os processos de subjetivação minoritários e plurais, capazes de desafiar a própria axiomática de grupo; além dos usos essencialistas ou meramente estruturais das identidades em um campo narrativo e polêmico, os usos pragmáticos das identidades como materiais provisionais de subjetivação, reconversão e ação política.

Esse percurso é construído paulatinamente através de quatro campos de problemas intercalados: (i) os impasses do movimento Direito e Literatura analisados por Julie Peters como resultado de uma dupla ansiedade e idealização, cujo ponto de convergência é a virada narrativa; (ii) uma possível relação entre o que Foucault denominou polêmica e aquilo que James Davison Hunter chamou de guerras culturais, ambos tendo como pano de fundo o contexto norte--americano dos anos 1980; (iii) as potencialidades presentes no espólio criativo dos critical studies (gender, queer, postcolonial e subaltern studies) e a tensão existente nesta literatura entre essencialização identitária e produção de diferença, entre estrutura e singularização; (iv) uma análise, a partir de Deleuze e Guattari, das possibilidades político-teóricas do conceito de minorias e da fragilidade das posições homogeneizantes em lidar com o pluralismo inerente ao acontecimento e em escapar dos mecanismos ecumênicos do capitalismo.

Isso permite não só revisar e avaliar criticamente essa cena teórica, que se desenrola entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1990, e continua a desdobrar-se ainda hoje, mas também diagnosticar uma série de linhas problematizantes que trazem perplexidades em comum: seria a virada narrativa, ou a busca de subjetividades essencializadas, uma "reação" à incapacidade dos movimentos sociais em prolongar as possibilidades políticas e existenciais contidas em acontecimentos divisores e emblemáticos, como Maio de 1968 ou Junho de 2013? Narrativa e Identidade seriam dois atalhos tomados para colmatar uma realidade em fuga ou em rápida transformação? O modelo religioso, jurídico e político da polêmica ou das guerras culturais traduziria uma tendência presente nos ativismos quando se deparam com um real evanescente e desafiador? É possível pensar uma política baseada em operações pragmáticas de reconversão subjetiva de identidades, que possam deslizar das fórmulas essencialistas e polarizadoras?

Sem dúvida, essas questões se projetam bem além do presente texto, que busca levantar alguns traços do problema a partir de desdobramentos situados em debates teóricos e contextos específicos. O esforço geral do trabalho implica retomar progressivamente o fio condutor da noção de alteridade, sempre ameaçada pela sua representação como uma identidade binária, fixa e projetiva, mas também como peça capturável por máquinas de guerra identitárias, de narrativas ou capitalísticas. Por outro lado, enfatiza-se que essa fortuna crítica pós-1968, parece apontar, embora a partir de premissas distintas, para uma função provisional e limitada da narrativa e da identidade, reduzidas ora a um suporte para passar à ação, ora a um fator de limitação que permanece, no entanto, aberto a processos multiplicadores de reconversão subjetiva.

Assim, sem abandonar as lutas políticas no nível das demandas concretas, dos direitos abstratos ou dos axiomas, a saída proposta para o problema envolve, por um lado, ressituar uma agenda de pesquisa sobre movimentos sociais a partir da noção de minoria--como "fórmula das multiplicidades" (Deleuze e Guattari, 2007)--, explorando tanto o papel agregador e provisional das identidades quanto, e principalmente, as capacidades de construção transversal e de singularização das lutas.

1 Direito e literatura: narrar o real, realizar o narrado?

O artigo de Julie Stone Peters (2005), "Law, literature and the vanishing real: on the future of a interdisciplinary illusion", constitui um excelente ponto de partida para a discussão porque, ao contrário do viés celebratório produzido pela crítica desde meados da década de 1970, descreve o encontro entre direito e literatura como um sucessivo fracasso produzido pelo mesmo impasse: ambas as disciplinas buscaram no campo das narrativas uma saída para uma crise de expectativas ativistas e progressistas, mas não encontram nada além de uma projeção fantasmagórica de suas próprias idealizações.

Em sua argumentação, a autora deixa claro, em primeiro lugar, que existe uma dimensão geracional a indicar que pelo menos parte dos protagonistas do movimento Direito e Literatura eram herdeiros das lutas pelos direitos civis e contra a guerra do Vietnã (ou seja, herdeiros do ciclo de 1968). Por conseguinte, há uma dimensão temporal que inscreve o movimento no interstício que vai da crise do próprio ciclo de 1968 até a ascensão da direita a partir dos anos 1980. Essa dupla inscrição implica que a relação interdisciplinar Direito e Literatura procede de uma reação, no sentido específico de ser mais uma resposta à crise político-criativa do pós-1968, do que uma agenda contemporânea ao ciclo de lutas americano.

Para Julie Peters (2005), essa reação se deu através de uma via de mão dupla. A primeira partia da percepção de que a crítica literária não dava conta de uma intervenção no real que o direito poderia suprir. Assim, uma aliança com as teorias jurídicas poderia inserir a literatura no campo do ativismo judicial que se seguiu às lutas de 1968 e fornecer uma dimensão concreta à disciplina. A segunda, que atingia o direito, dizia respeito à busca de um fundo valorativo sólido que pudesse enfrentar tanto o formalismo jurídico, como a crescente influência das teorias ligadas ao Law and Economics, garantindo, ao mesmo tempo, um arsenal interpretativo para levar a cabo o ativismo jurídico no âmbito da Justiça.

Essa tentativa de reencontro com o real foi movida por um vago espírito humanizador, que serviu de elo entre duas ansiedades: "a literatura poderia salvar o direito de si mesmo ao lembrá-lo de sua humanidade perdida, garantindo-lhe uma nova realidade através da infusão do humano. Ao mesmo tempo, ao dizer a verdade ao poder [através do direito], a literatura poderia, finalmente, fazer alguma coisa real" (Peters, 2005, p. 445). A armadilha é que esse real, na esteira da crise dos movimentos dos anos 1960 e da ascensão da direita americana, foi concebido através de uma inflação da própria ideia de narrativa ou de representação pela narração, tornando-se presa fácil de mecanismos ligados às guerras culturais dos anos 1980 e dos modelos de polêmica.

Peters analisa a aproximação entre direito e literatura a partir de três eixos: a) o direito como retórica de James Boyd White; b) o direito como hermenêutica em Ronald Dworkin; c) o direito como narrativa ou como contação de estórias (narrative jurisprudence e legal storytelling movement).

(a) O livro de James Boyd White de 1973, The Legal Imagination, se transforma num dos pontos de partida mais reconhecidos do movimento Law and Literature ao afirmar que "o direito não é um sistema de regras, ou algo que pode ser reduzido às escolhas políticas...

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