O enfoque econômico da saúde na união européia

AutorLucas Hernandes Correa
Páginas151-189
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O ENFOQUE ECONÔMICO DA SAÚDE NA UNIÃO E UROPÉIA(*)
THE ECONOMICAL APPROACH OF HEALTH IN THE EUROPEAN UNION
Lucas Hernandes Correa(**))
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo mostrar como a União Européia,
por meio da atividade da Corte de Justiça das Comunidades Européias, vem
restringindo a proteção à saúde em nome da efetivação do Mercado Comum
Europeu, base da construção européia. Demonstra-se este fato pela análise
das mais significativas decisões relativas, direta e indiretamente, à saúde
emanadas por essa Corte. Constata-se o esvaziamento da noção de prote-
ção à saúde por meio, principalmente, da interpretação estrita dos artigos(1)
do Tratado das Comunidades Européias, que viabilizam a possibilidade de
existência de medidas nacionais que contradigam o Direito Comunitário em
nome da proteção de certos valores, aqui a saúde. Nesse contexto, a saúde
enquanto medida derrogatória, o monopólio farmacêutico, o princípio de
precaução encontram-se fortemente enfraquecidos. Esse fato revela o papel
que a Corte européia vem assumindo por meio da integração negativa, den-
tro do atual contexto decisional cada vez mais complexo da União, e a inca-
pacidade desta para traçar objetivos comuns em áreas controvertidas, mas
de suma importância, como a da saúde.
Palavras-chave
Corte de Justiça das Comunidades Européias; Integração Negativa;
Monopólio Farmacêutico; Princípio da Precaução; Saúde.
(*) Artigo elaborado com base na primeira parte da dissertação “
La protection de la santé dans
l’Union européenne, une dualité de concepts
?” apresentada na conclusão do
Master en Droit de la
Santé
na Universidade Paris X — Nanterre (2006-2007) sob a supervisão dos Professores Isabelle
Vacarie e Pierre Louis-Bras
(**) Advogado, mestre em Direito Social e Direito da Saúde pela Universidade Paris X — Nanterre.
E-mail:
. Recebido em 30.5.08. Aprovado em 20.6.08.
(1) Vale notar que a numeração dos artigos do Tratado das Comunidades Européias (CE) aqui
citados não obedecem à nova numeração, fruto do Tratado de Lisboa de 2007.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 2 p. 151-189 Jul./Out. 2008
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ABSTRACT
This article aims to highlight how the European Union, throughout the
activity of the Court of Justice of the European Communities, has been restric-
ting the protection of health on the behalf of the European Common Market
effectiveness. This is shown by the analysis of the most significant decisions
related to health. It is noted that the notion of protection of health has been
loosing its sense by the strict interpretation of the articles of the European
Community Treaty, which actually allows the existence of measures in oppo-
sition to the European Law, in the name of the protection of certain major
tenets, like the protection of health. In this context, the derogatory measures,
pharmaceutical monopoly and principle of precaution find themselves almost
weakling. This fact reveals the role played by the European Court through the
negative integration process, inside the complex decisional context of the
European Union, and its incapacity of establishing common goals in contro-
versial but highly important domains like health.
Keywords
Court of Justice of the European Communities; Health; Negative Inte-
gration; Pharmaceutical Monopoly; Principle of Precaution.
INTRODUÇÃO
O advento da Primeira Grande Guerra revelou ao mundo algo que pare-
cia ainda não “inventado”: a existência de valores que deveriam e que devem
ser protegidos inelutavelmente; de forma geral, valores de ordem econômica e
social — no qual estaria incluída a saúde. Este acontecimento permitiu, também,
a identificação de uma importante correlação entre os comportamentos huma-
nos e a saúde dos homens, já que as condições de vida de uma população
refletem a maneira como os seres se tratam mutuamente (
Dallari
(2), 2003).
Como se não bastasse, em um curto período de tempo uma Segunda
Guerra acontece. Ela, além de confirmar as conseqüências da Primeira, mos-
trou a insuficiência do modelo social de então, evidenciando-se a necessidade
de se estabelecer um
novo pacto social.
O primeiro passo nesse movi-
mento de “reinvenção social” foi dado pela criação da Organização das Nações
Unidas (ONU) e de suas agências especializadas, dentre elas a Organização
Mundial da Saúde (OMS), visando à proteção e à garantia de certos direitos
considerados essenciais ao homem, de maneira a preservar e a propagar a paz.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 2 p. 151-189 Jul./Out. 2008
Lucas Hernandes Correa
(2) DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: Direito sanitário e Saúde Pública. Coletânea de
textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, v. 1.
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Ao mesmo tempo, na Europa assinava-se o Tratado de Paris (1952),
criando a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA). Este documento,
de base essencialmente econômica, visou também à manutenção da paz,
colocando pela primeira vez lado a lado França e Alemanha; o que confirma
a importância econômica da paz naquela época. Porém, hoje, essa idéia
poderia ser questionada. O tratado, apesar de sua base econômica, possuía
pretensões políticas inegáveis visto que ele serviria de fundação ao que
mais tarde seria a União Européia.
Nesse contexto, a área da saúde torna-se o epicentro de uma grande
mudança: reconhecida como
fator social, político e econômico fundamental
à construção de uma sociedade
, como o enunciado no preâmbulo da Cons-
tituição da OMS deixa transparecer, a noção extensa de saúde adotada nes-
se documento coloca aos Estados o encargo de oferecer ao indivíduo não
apenas os serviços de saúde adequados, mas todo um complexo estrutural
capaz de lhe permitir sua transcendência.
Essa noção extensa de saúde fez-se seguir pela formulação de uma
outra noção tão importante quanto ela: a noção de saúde pública. Segundo
Jean-François Girard
(3)
et al
. (1998), esta última consiste em uma demarcha
preocupada em lidar com os problemas de forma global e de identificar as
necessidades sanitárias propondo medidas de intervenção, desde a vigilân-
cia de riscos até a reinserção dos doentes, passando pela prevenção e o
cuidado, assim reintegrado em um todo coerente.
A tomada de consciência no campo da saúde pode ser vista como uma
revolução cultural de múltiplos fatores: o crescimento das desigualdades
sociais e geográficas(4), o reconhecimento da dimensão econômica da saúde(5),
o apego crescente aos determinantes sociais(6), a variedade dos agentes
implicados nas questões de saúde, o
empowerment(7)
da população, tanto de
doentes, como de seus familiares. Esta dimensão global, coletiva da saúde
foi reafirmada na conferência de Ottawa em 1986 (
Ottawa Charter for Health
(3) GIRARD, Jean-François,
Quand la santé deviant publique.
Hachette Littératures, 1998.
(4) Essas desigualdades foram enfatizadas pelo desenvolvimento de sistemas econômicos mais ou
menos atuais — capitalismo, liberalismo e neoliberalismo — que têm como efeito principal a geração
de desigualdades, aumentando o fosso existente entre ricos e pobres e a distância entre os
interesses e as necessidades desses e daqueles.
(5) Aqui é conveniente lembrar o alerta feito por
François Gremy:
na verdade, quando se fala na
dimensão econômica da saúde, não se faz referência às despesas de saúde, mas, sobretudo à
riqueza que representa a uma Nação o fato de ter uma população saudável.
(6) Esses determinantes sociais não se referem apenas às interações moleculares que os indivídu-
os mantêm com seu meio ambiente (toxinas, alimentos, poluição), mas, também, às interações
simbólicas e relacionais: relação de dominação, intensidade e qualidade das relações sociais
(tradução livre e literal).
(7) Essa palavra foi utilizada em inglês de forma a ilustrar a gradual de aquisição de poder,
notadamente por parte dos doentes, com relação às questões ligadas à saúde da população. Este
processo, que foi viabilizado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, principalmente a
internet,
levou à conseqüente revindicação de participação não apenas dos doentes, como, também,
da população em geral, nas decisões relativas à saúde.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 2 p. 151-189 Jul./Out. 2008
O Enfoque Econômico da Saúde na União Européia

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