Ensaio sobre a mecânica obrigacional e contratual

AutorCarlos Alberto Bittar Filho
CargoProcurador do Estado de São Paulo Doutor em Direito pela USP
Páginas5-8

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"Eu não sei que imagem o mundo fará de mim, mas eu me vejo como um menino brincando na praia, divertindo-se ao descobrir de vez em quando um seixo mais liso ou uma concha mais bonita do que o usual, tendo diante de si o imenso e desconhecido oceano da verdade." (Isaac Newton)

I - Da mecânica obrigacional

Em que consiste a obrigação (obligatio)? Cuida-se de relação jurídica caracterizada pelos seguintes elementos formadores: a) sujeito ativo (credor), relativamente ao qual se fala em "crédito" (creditum); b) sujeito passivo (devedor), relativamente ao qual se fala em "débito" (debitum); c) vinculum iuris, que é o elo de ligação entre os sujeitos; d) objeto imediato, que é a prestação, consistenteemdar, fazerou nãofazer(dare, facere ou non facere); e) objeto mediato, que é o bem da vida almejado (coisa, pecúnia, serviço etc.); f) responsabilidade na hipótese de inadimplemento (caracteristicamente, ela é atribuída ao devedor, podendo, no entanto, ser atribuída a outra pessoa que a assuma, como, exemplificativamente, o fiador). Adotamos, como se vê, a concepção dualista da obrigação, que faz a separação entre "débito" (Schuld) e "responsabilidade" (Haftung). O crédito é direito de natureza relativa, pois que é oponível apenas ao sujeito passivo do vínculo obrigacional, apartando-se, dessarte, dos direitos qualificados como absolutos (direitos da personalidade e direitos reais), cuja oponibilidade é erga omnes. A essas considerações se deve acrescer que é fulcral que as partes se portem com lisura e correção, o que é consequência da boa-fé objetiva, que impõe norma de conduta àquelas. Ademais, enquanto vinculadas pela obrigação, as partes hão de manter-se em perfeito equilíbrio, de maneira que uma não prevaleça sobre a outra. Esse equilíbrio de poder entre as partes, no microcosmo da relação jurídica obrigacional, realiza a justiça comutativa e, mais ainda, aquilo que poderíamos denominar "democracia obrigacional". Corolário do equilíbrio de poder no microcosmo obrigacional é o equilíbrio das prestações avençadas pelas partes, de modo que não haja prevalência de uma sobre outra.

A relação jurídica obrigacional não é, em nada e por nada, estática. Cuida-se de liame caracterizado pelo dinamismo, podendo ser mesmo encarado como processo (Clóvis do Couto e Silva). No que toca à mecânica (ou dinâmica) obrigacional, podem ser vislumbradas as seguintes fases (desdobramentos do que se poderia denominar iter obligationis): a) formação; b) execução; c) pós-eficácia. A formação é a fase de surgimento do vínculo obrigacional, ou seja, o momento em que ele se desprende de sua fonte, contratual ou acontratual (Miguel Maria de Serpa Lopes). A execução é a fase de cumprimento (ou adimplemento) da obrigação, o que a extingue, liberando as partes envolvidas e fazendo com que ela saia do ordenamento jurídico. Dogmaticamente, é nessa fase que entram em cenatodasasfigurasjurídicasde natureza extintiva do vinculum iuris, a saber: a) o pagamento (solutio: CC, arts. 304 a 333); b) o pagamento em consignação (CC, arts. 334 a 345); c) o pagamento com sub-rogação (CC, arts. 346 a 351); d) a imputação do pagamento (CC, arts. 352 a 355); e) a dação em pagamento (datio in solutum: CC, arts. 356 a 359); f) a novação (novatio: CC, arts. 360 a 367); g) a compensação (compensatio: CC, arts. 368 a 380); h) a confusão (confusio: CC, arts. 381 a 384); i) a remissão das dívidas (CC, arts. 385 a 388). A doutrina especializada (Antônio Junqueira de Azevedo) classifica como negócios jurídicos a dação em pagamento e a novação. Mas a obrigação pode vir a não ser executada, hipótese em que se dá o respectivo inadimplemento (CC, arts. 389 a 420), cujas consequências fundamentais são: a) a responsabilidade do devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários advocatícios (CC, art. 389); b) a sujeição da totalidade do patrimônio do devedor ao ressarcimento (CC, art. 391). A denominada "pós-eficácia das obrigações", por seu turno, representa caso de pós-eficacização, a nosso ver. Quando do entabulamento do negócio jurídico, por expressa convenção entre as partes ou naturalmente (naturalia negotii), dele decorrem determinadas obrigações cuja eficácia jurídica fica contida, aguardando o (futuro e incerto) adimplemento daquele. São, portanto, obrigações condicionais, cuja eficácia resta submetida ao implemento da condição suspensiva representada pela extinção do negócio jurídico por regular cumprimento. Em se verificando a normal execução do negócio jurídico, tornam-se eficazes, post pactum finitum, as referidas obrigações.

Se não há coincidência entre os momentos daformação e da execução, verifica-se que decorre um lapso de tempo entre esta e aquela. Essa distância temporal é relevante quando ocorre desproporção entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução. É que, quando nasce o vínculo obrigacional, tem ele por basePage 6 (objetiva) determinadas circunstâncias fáticas (Karl Larenz). Pode-se mesmo asseverar que o liame obrigacional está assentado, no momento de sua formação, sobre certa realidade fática, a qual pode vir a modificar-se. A nova codificação civil, diferentemente da anterior, plasmou regra, inspirada na teoria da imprevisão, consoante a qual se, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que se assegure, tanto quanto possível, o valor real da prestação (CC, art. 317). Oobjetivo de tal norma é evitar o locupletamento ilícito de uma...

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