Ensino Juridico e Reproducao da Hierarquia.

AutorKennedy, Duncan

Faculdades de direito são locais intensamente políticos, a despeito do fato de que a faculdade de direito moderna parece intelectualmente despretensiosa, desprovida de ambição teórica ou visão prática de como pode ser a vida social. A mentalidade de escola de negócios, a atenção sem fim às árvores à custa das florestas, o aspecto alternadamente severo e camarada do foco na limitada tarefa em questão--tudo isso é apenas uma parte do que está acontecendo. A outra parte é treinamento ideológico para serviço voluntário nas hierarquias do Estado de bem-estar corporativo. (1)

Dizer que a faculdade de direito é ideológica quer dizer que o que os professores ensinam, juntamente com competências básicas sobre o que o direito é e como ele funciona, é errado, é absurdo; que a mensagem sobre a natureza da competência jurídica e sua distribuição entre os estudantes é errada, é absurda; que as ideias acerca das possibilidades da vida como advogado que os estudantes adquirem pelo ensino jurídico são erradas, são absurdas. Mas tudo isso é absurdo com uma inclinação; é enviesado e motivado, e não um erro aleatório. O que se diz é que é natural, eficiente e justo para que escritórios de advocacia, a ordem dos advogados como um todo e a sociedade a que ela serve sejam organizados em seus padrões atuais de hierarquia e dominação.

Porque os estudantes acreditam no que lhes é dito, explícita e implicitamente, sobre o mundo no qual estão adentrando, eles se comportam de formas tais que realizam as profecias que o sistema faz sobre eles e sobre aquele mundo. Esse é o elo de realimentação que completa o sistema: os estudantes fazem mais do que aceitar as coisas como são, e a ideologia faz mais do que sufocar a oposição. Estudantes agem afirmativamente dentro dos caminhos cortados para eles, cortando-os ainda mais fundo, dando ao todo uma pátina de consenso e tecendo cumplicidade na história de vida de todo mundo.

Neste artigo, eu me ocupo, respectivamente, da experiência inicial do primeiro ano, o conteúdo ideológico do currículo da faculdade de direito, as práticas não-curriculares de faculdades de direito que treinam estudantes para aceitar e participar da estrutura hierárquica da vida no direito e o problema de decidir que implicações para a vida prática podemos extrair da análise da estrutura de hierarquia existente. A parte seguinte sugere maneiras pelas quais estudantes progressistas ou de esquerda que estejam determinados a não deixar que a faculdade de direito os desmobilize podem lidar com essa experiência. Uma seção final fornece um exemplo de uma proposta utópica de transformação de uma faculdade de direito.

  1. Ideologia e Hierarquia no Ensino Jurídico

    1. A Experiência de Primeiro Ano

      Um número surpreendentemente grande de estudantes vai para a faculdade de direito com a noção de que ser advogado significa algo mais, algo mais socialmente construtivo do que apenas exercer uma profissão altamente respeitável. Existe a ideia de desempenhar o papel que uma geração anterior associou com Louis Brandeis, o papel de serviço através do direito, executado com uma magnífica competência técnica e uma crença profunda de que, na sua essência, o direito é uma força progressista, apesar do quanto possa ser distorcido pelos arranjos atuais do capitalismo. Para uns poucos, há uma noção contrastante, mais radical, segundo a qual o direito é uma ferramenta de interesses estabelecidos; que é, na sua essência, superestrutural, mas uma ferramenta que um profissional friamente efetivo pode, às vezes, voltar contra os dominadores. Naquela primeira noção, o estudante aspira a ajudar os oprimidos e a transformar a sociedade trazendo à tona o conteúdo latente de um ideal válido; na segunda, o estudante se vê como parte técnico, parte lutador de judô, capaz de virar o jogo exatamente porque nunca se deixa enganar pela retórica que é tão importante para os outros estudantes.

      Além disso, existem motivações conflitantes, as quais são igualmente reais para ambos os tipos. As pessoas consideram as faculdades de direito extremamente competitivas, um lugar onde um estilo durão, esforçado e inteligente é cultivado e recompensado. Estudantes entram na faculdade de direito com a ideia de que desenvolverão esse lado neles mesmos. Ainda que desaprovem, a princípio, esse seu lado, eles tiveram outras experiências nas quais acabaram por querer e gostar de aspectos deles mesmos que, a princípio, eles desaprovavam. Como alguém pode saber que não está "realmente" procurando desenvolver a si mesmo dessa forma tanto quanto está motivado pela vocação de transformação social?

      Há também a questão da mobilidade social. Quase todo mundo cujos pais não eram membros da intelligentsia profissional/técnica parece sentir que ir para a faculdade de direito é um avanço em termos de história familiar. Isso é verdadeiro até para filhos de comerciantes de alto nível, desde que a posição de seus pais seja devida ao trabalho duro e esforço, e não a terem nascido nos escalões mais altos. É raro que os pais desaprovem que seus filhos vão para a faculdade de direito, quaisquer que sejam suas origens. Então, dar esse passo em particular tem um significado social, por mais que os estudantes possam rejeitá-lo, e esse significado social é o sucesso. O sucesso é agridoce quando se sente que deveria ter entrado em uma faculdade melhor, mas tanto o amargo quanto o doce sugerem que suas motivações são impuras.

      A experiência inicial de sala de aula sustenta a ambivalência ao invés de dissipála. Os professores são esmagadoramente brancos, homens, com comportamento sufocantemente heterossexual e de classe-média. A sala de aula é fortemente hierárquica, com o professor recebendo um grau de deferência e provocando pavores que lembram o ensino médio em vez do college. O sentido de autonomia que se tem em uma aula, com a regra de que você deve deixar o professor tagarelar sem interrupção, em equilíbrio com a regra segundo a qual ele não pode lhe fazer nada, desaparece. Em seu lugar está uma demanda por pseudoparticipação na qual você se esforça desesperadamente para, na frente de uma grande audiência, ler uma mente determinada a enganar você. Quase nunca é algo tão ruim quanto The Paper Chase ou One-L, mas ainda é humilhante estar assustado e inseguro de si mesmo, especialmente quando o que torna alguém inseguro é um arranjo de sala de aula que sugere, de uma só vez, a família patriarcal e um estado-charada kafkiano. A sala de aula da faculdade de direito no início do primeiro ano é culturalmente reacionária.

      Mas é também envolvente. Você está aprendendo uma nova linguagem, e é possível aprendê-la. A pseudoparticipação o deixa intensamente a par de como os outros estão indo, fornecendo infinitos fundamentos para comparação. A informação vem de todos os lados, e coisas que você sabia que estavam ali, mas não entendia, estão se tornando inteligíveis. O professor oferece encorajamentos sutis bem como razões nãotão-sutis para preocupação. A performance está na mente, a adrenalina flui, o sucesso tem um significado a cada noite e a cada dia conforme os textos e materiais são atribuídos. No fim das contas, esse é o próximo segmento: está-se movendo do mundo vagamente sentimental do college, ou o mundo frustrante do trabalho de escritório ou trabalho doméstico, para algo que promete uma dose de "realidade", ainda que seja uma realidade fria e assustadora.

      Rapidamente fica claro que nem os estudantes nem o corpo docente são tão homogêneos quanto pareciam à primeira vista. Alguns professores são mais autoritários que outros; alguns estudantes além de você reagiram com horror à infantilização dos primeiros dias ou semanas. Parece até haver uma conexão entre comportamentos na sala de aula e visões substantivas, com os professores mais "brandos" também parecendo ser mais "liberais", talvez mais simpáticos aos requerentes na disciplina de responsabilidade civil, mais inclinados a ouvir os chamados argumentos de política, bem como menos intimidadores nas discussões em sala. Mas existe um aspecto perturbador desse processo de diferenciação: na maioria das faculdades de direito se descobre que os professores mais rígidos e menos orientados por políticas são os mais populares. Os mais brandos parecem transmitir menos conteúdo, eles deixam as coisas vagarem, e começa-se a ficar preocupado com o fato de a sua simpatia vir à custa de uma qualidade metafísica chamada "rigor", considerada essencial para o sucesso no exame da ordem e no mundo adulto da prática. A ambivalência se reafirma. Assim como entre conservadores e centristas molengas, os inimigos que o assustam, mas sutilmente lhe dão segurança, podem parecer mais atraentes do que aliados tão desancorados quanto você mesmo.

      Há uma experiência intelectual que corresponde em alguma medida à emocional: a revelação gradual de que não há espaço para o pensamento o pensamento liberal comprometido (para não falar do radical) em parte alguma da camada exterior do ensino jurídico. Em sala de aula, a questão não é esquerda contra direita, mas conservadorismo pedagógico contra liberalismo moderado e desintegrado. Provavelmente, todos os seus professores negarão ou pelo menos tirarão ênfase do caráter político da sala de aula e dos seus vários assuntos, embora alguns provavelmente sejam bem claramente simpáticos a causas progressistas, e alguns talvez inclusive trabalhem meio expediente como advogados de esquerda. Estudantes estão lutando pela maestria cognitiva e contra a depressão sorrateira do pré-profissional. O conteúdo intelectual real do direito parece consistir em aprender regras, o que elas são e por que elas precisam ser como são, enquanto torcem pelo juiz ocasional que parece inclinado a torná-las marginalmente mais humanas. A experiência básica é a de uma dupla desistência: de uma experiência apassivadora de sala de aula e de uma atitude passiva perante o conteúdo do sistema jurídico.

      O primeiro passo em direção a esse sentido de irrelevância do...

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