Direito fundamental à constituição de entidade familiar por pessoa homossexual

AutorJoyceane Bezerra de Menezes; Cecília Barroso de Oliveira
Páginas62-74

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Introdução

Recente decisão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por quatro votos a três, concedeu o direito a casal homossexual de obter, perante uma vara de família, a declaração de existência da sua união 1 2 3. Embora longe da unanimidade, o entendimento foi bastante comemorado pelos movimentos de apoio aos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros (GLBTT), que cogitavam tratar-se do reconhecimento judicial da união homoafetiva como espécie de família.

Não foi bem assim. O caso envolvia um canadense e um brasileiro, que pleiteavam a declaração de existência de sua união, para que o primeiro pudesse obter o visto permanente de residência no Brasil. Em primeira instância, o juiz da vara de família extinguiu o processo sem julgamento do mérito, arguindo a sua incompetência em razão da matéria. A decisão foi confirmada em segundo grau e, finalmente, reformada pelo Superior Tribunal de Justiça, que se manifestou em sentido contrário, admitindo a competência material da vara de família.

O acórdão tratou somente do problema da competência, sem enfrentar o mérito da causa. Não há dúvida de que a decisão foi um passo importante para a garantia de um direito aos homossexuais. Porém, o reconhecimento da união homoafetiva como modalidade de entidade familiar é bem mais que isso.

Além da omissão quanto ao mérito, há que se observar o fato de que a decisão partiu apenas de uma das Turmas do STJ e sem o voto da unanimidade de seus integrantes. E, ainda, lembrar que, em outra ocasião, quando o STJ foi provocado a manifestar-se especificadamente sobre o reconhecimento da união homoafetiva, a qualificou como sociedade de fato, exigindo a prova do labor de ambos os companheiros para ulterior partilha de bens, em clara analogia às relações obrigacionais, e não às relações familiares 4.

Na verdade, não é a primeira vez que os Tribunais Superiores se manifestam sobre as uniões homoafetivas. O próprio Supremo Tribunal Federal já foi levado a examinar a matéria, analisando a constitucionalidade do artigo 1º da Lei 9.278/96, que regulamentava a união estável, sem contemplar as entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Na oportunidade, apesar de reconhecer a relevância social, jurídica e constitucional da questão, extinguiu o processo sem julgamento do mérito, alegando falha processual.

O Brasil é campeão mundial em crimes homofóbicos 5. A cada três dias, um homossexual é assassinado no país. Em 2009, a Parada do orgulho LGBTT, evento que acontece em São Paulo e já está na sua décima terceira edição, reuniu mais de três milhões de pessoas pedindo respeito às diferenças. Na mesma ocasião, uma bomba lançada feriu mais de 40 pessoas, um jovem sofreu politraumatismo e outro morreu em razão de espancamentos.

Os números refletem uma realidade paradoxal: de um lado, uma aparente aceitação da maioria, de outro, atos de preconceito e intolerância, incompatíveis com um Estado Democrático de Direito, cujo valor fundamental é a dignidade da pessoa humana. Tal paradoxo é confirmado pelo próprio Estado, o qual eleva à qualidade de fundamentais a igualdade e a liberdade e, ao mesmo tempo, segrega aqueles que possuem orientação sexual diferente da maioria, negando-lhes o reconhecimento de suas relações afetivas como entidades familiares.

O Código Civil é profícuo sobre a união estável e absolutamente silente quanto às uniões homoafetivas, embora a Constituição Federal, no artigo 226, caput, não faça qualquer adjetivação à família, objeto de proteção do Estado. Page 63

A decisão do STJ, definitivamente, não reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares. A sua importância resulta da admissão da matéria como objeto da competência das varas de família, fortalecendo o entendimento que já orientava a atuação de diversos juízes singulares.

Diante do exposto, pergunta-se: a) Deixando de reconhecer a união afetiva entre pessoas homossexuais, o Estado declara que só existem relações de afeto, juridicamente relevantes, entre pessoas heterossexuais? b) Se o Estado reconhecer o fato social da existência de relações homossexuais, as considera dignas da mesma tutela dispensada às relações de afeto heterossexuais ou entende que são menos relevantes para o Direito?

Essas e outras perguntas seriam cabíveis em relação ao tema, mas todas podem ser subsumidas a uma só: é compatível com o sistema constitucional brasileiro que à pessoa homossexual seja conferido tratamento distinto daquele dispensado à pessoa heterossexual?

Com o objetivo de promover a discussão sobre as indagações acima, o presente estudo se estrutura a partir da análise dos direitos fundamentais. Evoca a dignidade da pessoa humana, mediatizada nos direitos à igualdade, à liberdade, à integridade psicofísica e à solidariedade, para justificar a existência do direito materialmente fundamental à constituição de entidade familiar por pessoas do mesmo sexo. Defende-se a eficácia plena e a aplicabilidade imediata desses princípios na consolidação do novo modelo jurídico de entidade familiar ao qual se estende a proteção descrita no artigo 226 do texto constitucional. Isto por entender que a família, objeto da tutela civil-constitucional, não é adjetivada e se consubstancia em um modelo plural.

1. Teoria geral dos direitos fundamentais: premissas básicas

Na concepção jusnaturalista de Carl Schmitt 6, os direitos fundamentais são intrínsecos ao homem e se restringem aos direitos individuais, "son esencialmente derechos del hombre individual, libre, y, por cierto, derecho que el tiene frente al Estado". Inobstante, a Constituição Brasileira ampliou o rol dos direitos fundamentais para nele incluir direitos sociais, econômicos e difusos.

Mas o que significa dizer que um direito é fundamental?

A categoria de fundamentalidade diz respeito à especial proteção destes direitos, tanto no sentido formal, quanto no material 7. No âmbito formal, as normas de direitos fundamentais são aquelas expressamente consagradas por normas "com valor constitucional formal". Têm hierarquia superior às demais, sendo submetidas a procedimentos mais complexos de revisão e, em alguns casos, consubstanciam limites materiais à própria revisão. 8

A fundamentalidade material, por sua vez, deve ser analisada a partir de seu conteúdo. Os direitos materialmente fundamentais devem ser constitutivos das estruturas básicas do Estado e da Sociedade e, primordialmente, da pessoa humana dentro destas estruturas. 9

Importante salientar que os direitos materialmente fundamentais não estão necessariamente expressos no rol constitucional, pois, por força da dicção do §2º do artigo 5º da Constituição, permite-se a ampliação do elenco dos direitos fundamentais para além dos formalmente previstos.

Assim, conforme a previsão constitucional, poderão ser considerados como direitos fundamentais aqueles direitos que possuam nota de essencialidade e decorram do regime democrático de direito, de outros direitos fundamentais ou de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.

Analisando o conteúdo dos direitos fundamentais, há que considerar o sistema de valores incorporados pela Constituição, por meio dos princípios, das cláusulas pétreas, dos objetivos e dos fundamentos nela previstos. Neste sentido, o direito à constituição de entidade familiar deve ser entendido em sua fundamentalidade material, por integrar o substrato axiológico dos princípios da igualdade, da liberdade e, consequentemente, da dignidade da pessoa humana.

Classificados como direitos de primeira geração por Bonavides, 10 os direitos individuais surgiram no Século XVIII, com a concepção de Estado Liberal, e têm como objetivo primordial resguardar os direitos e as liberdades do indivíduo contra o arbítrio do Estado. A Constituição Brasileira prevê no Capítulo I do Título II o rol dos direitos fundamentais individuais. Page 64

Ana Maria D'Ávila Lopes 11, divergindo da doutrina majoritária, identifica uma hierarquização entre os direitos fundamentais, pelo fato de se dedicar tratamento diferenciado aos direitos individuais em relação aos demais. Justifica sua tese nos seguintes argumentos: a) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de San José da Costa Rica: que incluiu praticamente todos os direitos individuais dentre os insusceptíveis de restrição, mesmo em casos emergenciais; b) a Constituição Federal Brasileira: que incluiu apenas os direitos individuais no rol das cláusulas pétreas; c) Apesar da previsão constitucional de aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais, a doutrina tem destacado aqueles direitos que gozam de eficácia jurídica e material, os quais podem ser imediatamente aplicados (individuais), dos que gozam apenas de eficácia jurídica, como alguns direitos sociais, cuja aplicação se sujeita a certas realidades fáticas materializadas segundo a teoria da reserva do possível 12.

A digressão acima tem relevo na medida em que justifica maior importância e disciplinamento especial dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade, modelos de direitos individuais, dos quais decorrem os direitos à liberdade de orientação sexual e à formação de entidade familiar.

Adotando a classificação de Alexy 13, as regras e os princípios são espécies do gênero norma. Os princípios são "mandatos de otimização" que estabelecem que algo deva ser realizado na maior medida possível, em dada situação jurídica concreta. Podem ser cumpridos integralmente ou não, e a obrigação de seu cumprimento dependerá da situação fática sob análise; as regras...

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