Escrevendo al

AutorPhilippopoulos-Mihalopoulos, Andreas
  1. Como escrever além das distinções? (*)

    Escrever é sobre distinguir, o que incluir e o que deixar de fora. Portanto, este capítulo não trata do ato de escrever sem distinções, mas de tomar consciência das distinções que habitualmente empregamos ao escrever sobre o direito (1) e, em seguida, fazer um esforço para ir além delas. A seguir, pedirei aos leitores que deixem para trás pelo menos algumas distinções. A primeira, de natureza mais formal, é aquela entre escrita sócio-jurídica e jurídico crítica. A segunda, referindo-se mais à substância, é a distinção entre texto e contexto, ou, de maneira um pouco diferente, entre direito e matéria (e com ela outras disciplinas, espaço, corpos humanos e não humanos, objetos e até ideias).

    Correndo o risco de ignorar o bom conselho de Margaret Atwood ("Escrever em si já é ruim o suficiente, mas escrever sobre escrever é certamente pior no departamento de futilidade". 2002: xvi), este capítulo é sobre escrever. A ideia é explorar maneiras pelas quais podemos abrir nossas práticas de escrita além das distinções formais de quem é o quê, ou distinções substantivas do direito de um lado, e todas as outras coisas do outro. Ficamos condicionados por muito tempo a pensar, escrever e agir de acordo com as divisões de terrenos. Essas são práticas insidiosas, empregadas em nossos escritos de uma maneira muitas vezes impensada e incorporada na escolha dos autores que lemos, nas conferências em que assistimos, nas faculdades de Direito em que procuramos emprego. Mesmo os mais progressistas de nós regularmente instruímos nossos alunos a partir de tais distinções.

    Este capítulo, no entanto, não se trata apenas do escrever. A pesquisa jurídica nunca pode ser "apenas" um ato de escrita. Sempre existe um horizonte jurídico, político, social em termos gerais, e todos somos orientados por ele. Suponho aqui que todos os leitores deste volume compartilhem um horizonte mais amplo: o desejo de um direito mais justo. Ao estabelecer artificialmente fronteiras entre, digamos, crítico e sócio-jurídico, enfoques interdisciplinares e disciplinares, ou análises etnográficas pessoais e "objetivas" do direito (mesmo em contexto), debilitamos a possibilidade de uma frente unida que precisamos apresentar em vista de todos os desafios, bastante extremos, com os que lidamos atualmente como estudiosos. Esses desafios são bem conhecidos e aparecem igualmente em um nível micro (gerencialismo nas universidades, mercantilização das pesquisas, quantificação do ensino) e macro (desrespeito global ao direito, novos equilíbrios geopolíticos, natureza insular do cenário político global em termos de assistência, meio ambiente e refugiados, degradação ecológica e assim por diante).

    Nas duas seções a seguir, analiso as distinções acima e os motivos pelos quais elas devem ser consideradas obsoletas. A seguir, (seção 4), aponto para a nossa frequente relutância em deixar para trás métodos tradicionais e passar para o que Adorno chamou da lei do ensaio, ou seja, uma maneira de escrever que permita que elementos previamente invisibilizados apareçam. Para fazer isso, defendo que precisamos resistir ao impulso de resolução (seção 5) e, como alternativa, tratarmos o ensaio como um corpo com sua própria agência jurídica (seção 6). Uma maneira de fazer isso é insistindo em usar o "eu" como uma semântica de responsabilidade pessoal, mas também como uma indicação de uma coletividade (seção 7). Outra maneira é permitir que o texto se desdobre - na verdade, precisamos "ouvi-lo", em vez de sempre tentar impor a ele uma formatação (seção 8). Na seção 9, resumo nossas responsabilidades como estudiosos e escritores do direito e concluo com o devaneio de uma lista (seção 10) e um lembrete do que é, assim espero, o motivo mais importante pelo qual escrevemos: permitir o surgimento de um direito mais justo.

  2. Nós nunca fomos críticos?

    Deixe-me começar com a primeira distinção, entre sócio-jurídico e crítico. Meu argumento é que a manutenção da distinção faz um desserviço tanto à escrita crítica quanto à sócio-jurídica (tradicionalmente entendida). Essa distinção implica que a escrita sócio-jurídica não pode ser crítica, ou seja, teoricamente informada com fortes inclinações críticas e potencialmente até uma visão do horizonte que abrace o futuro; e, respectivamente, que o crítico não pode ser sócio-jurídico, ou seja, pragmaticamente contextualizado, em contato com uma sociedade em constante transformação, cujo estudo frequentemente requer uma abordagem que, em termos gerais, intitulamos de empírica. Não há dúvida, que várias publicações teóricas prestam pouca atenção em como a teoria é traduzida em prática e como, de maneira mais ampla, a teoria pode fazer a diferença; da mesma forma, uma quantidade considerável de pesquisa aplicada não está interessada nos benefícios que uma teorização mais extensa traz em termos de pensamento diagonal, criativo e perturbador. Mas as coisas estão mudando rapidamente: um número crescente de estudiosos na última década resistiu a essas linhas duras e produziu um trabalho que teoriza a prática e aplica a teoria, se não na mesma medida, pelo menos sem cair em um binarismo antiquado (para além de uma vasta bibliografia, ver indicativamente Perry-Kessaris, 2017; Grabham, 2016; Bottomley e Wong, 2009).

    Essa distinção (e outras na linha da "alta teoria" versus pensamento fundamentado, concretude versus abstração, utopia versus pragmatismo, e assim por diante) deixaram de ter utilidade, sua relevância agora só se faz útil como uma ferramenta para demarcação dos terrenos do conhecimento. Talvez esteja na hora de entender que existe um pensamento jurídico de qualidade que está ciente de seu potencial efeito sobre a realidade e trabalha nisso para orientar seu desenvolvimento teórico; e portanto, não existe um pensamento jurídico de tanta qualidade que permaneça desconectado da realidade e deliberadamente ignore seu próprio potencial transformador. A menos que amplamente entendido através da contextualização, do engajamento afetivo e do envolvimento pessoal, nem os estudos empíricos nem o mero trabalho teórico têm o monopólio da realidade.

    Em resposta a isso, tentei esboçar o conceito de pesquisa "sócio-jurídica crítica" (2015) e, mais recentemente, a prática de "direito e teoria" (2018) como formas de ir além das distinções. Este texto é uma continuação do mesmo projeto. É minha esperança, no entanto, que cada vez mais, qualquer necessidade de criar uma categoria para o tipo de pesquisa que estamos realizando, tanto neste volume quanto cada vez mais na academia, se tornará obsoleta.

  3. Qual é o contexto do direito?

    Considerando os leitores deste volume, não há necessidade de enfatizar como um foco doutrinário na letra seca da lei falha em entender o que é o direito. O contexto do direito não é o que o brócolis é para o bife de tofu - os pedaços verdes opcionais. Em vez disso, o contexto do direito cria o texto da lei, confere-lhe relevância, vincula-o à realidade, reveste-o da matéria, cria um corpo e o posiciona no espaço e no tempo. Contexto é texto, e a distinção entre os dois está se tornando cada vez mais desatualizada, tanto faz se falamos em pesquisa sócio-jurídica, crítica e/ou interdisciplinar. A questão relevante agora é: qual a melhor forma de incluir o contexto ao escrever sobre o direito.

    A questão tem gravidade considerável: tornou-se cada vez mais o principal desafio e responsabilidade de um pesquisador do direito. A aprovação ética do trabalho empírico se trata precisamente da filtragem cuidadosa do contexto apresentado no texto. Da mesma forma, a questão de qual teoria escolher e como aplicá-la é cada vez mais importante, não apenas em termos de referencial teórico no nível de doutorado, mas ainda mais cedo em termos de trabalhos de graduação que pretendem se envolver com a vida contemporânea. A teoria precisa estar presente, não apenas porque fortalece o argumento jurídico, mas também porque o enriquece e o abre a potenciais conflitos que o direito habitualmente exclui. Por fim, outras disciplinas entram no pensamento jurídico na forma de economia, gênero, política ou talvez menos tradicionalmente em termos de espaço, tempo, corporeidade e assim por diante.

    A infinidade dessas considerações e a urgência particular em que elas emergem (especialmente questões políticas, geopolíticas e ambientais) nos deixam com duas opções: ou continuamos lamentando a perda de (uma fantasia de) soberania disciplinar do direito, e resistimos à maré, insistindo em restabelecer os limites do direito de acordo com as linhas tradicionais; ou aceitamos que o direito esteja mudando de acordo com a realidade, com a teoria e outras disciplinas, e se torne ainda mais rico por isso. Na realidade, só vejo uma opção aqui.

    No entanto, há uma condição: a função do direito permanece distinta de outras disciplinas. Por mais que gostemos do envolvimento do direito com, por exemplo, a antropologia, também estamos cientes do fato de que a pesquisa jurídica não é antropologia. Em vez disso, pode aspirar a se tornar uma espécie de antropologia jurídica. Isso significa que o texto (neste caso, a lei) ressurge de dentro do contexto: o texto e o contexto, embora de muitas maneiras idênticos, não se tornam um. A função social do direito de vincular expectativas em termos do que é permitido e do que não é, é importante. Embora sem dúvida, em um continuum com considerações normativas (culturais, antropológicas e sociológicas), o direito (o modo como é entendido nas escolas de Direito) ainda é reconhecível e ainda pode ser diferenciado de outros tipos de normas. Não nos tornemos arrogantes: este é um espectro, e o direito é apenas uma forma de intensificação do normativo, muitas vezes auxiliado por condições espaciais (digamos, em um tribunal) e temporais (digamos, em tempos de alerta âmbar terrorista). O que é considerado "meramente" cultural, muitas vezes acaba se tornando um direito "sólido" e vice-versa.

  4. Por que nós todos...

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