As relações entre esfera pública e democracia no pensamento de Jürgen Habermas

AutorWilson Levy Braga da Silva Neto
CargoBacharelando em Direito
Páginas219-238

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Introdução

Que não se esqueça: o pensamento é uma ação; a teoria é uma forma de prá-tica. O pensamento é utópico, não porque inventa mundos ou sugere faces perfeitas para uma sociedade a construir, mas porque se lança ao território da transformação da sociedade, e tem nessa ação que lhe é constitutiva, o seu mote mais exato, o político.

Márcia Tiburi1

Discutir as relações entre democracia e esfera pública a partir de um recorte da vasta produção intelectual de Jürgen Habermas, objetivo deste trabalho, exige, em primeiro lugar, a compreensão de uma série de elemen-tos e fundamentos cujo conteúdo influenciaram profundamente o pensa-mento do filósofo alemão.

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Do contrário, ainda que seja possível apresentar seu conjunto de idéias de forma pronta, tal trabalho estaria amputado de suas raízes históricas e de suas bases reflexivas, consistindo, portanto, num mero exercício de glosa e comentário, pouco útil à discussão que se propõe.

Nesse sentido, o primeiro passo a ser dado é, de forma breve, resgatar alguns autores. Precisamente, adotaremos o pensamento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, precursores de Habermas na chamada Esco-la de Frankfurt, com especial destaque para os textos Dialética do Esclarecimento , escrito pelos dois autores, e O Eclipse da Razão , de autoria de Horkheimer, de forma a aprofundar as discussões sobre a evolução da cha-mada Teoria Crítica até o momento em que Habermas assume a dianteira das discussões ao propor uma esfera pública pautada nas regras do discur-so argumentativo, marcada por uma linguagem e por uma argumentação. Não nos furtaremos, porém, de dar destaque para o texto fulcral denomi-nado Resposta à pergunta o que é esclarecimento (ou “o que é Aufklärung”?) , de Immanuel Kant, cujas idéias influenciaram em larga escala as investigações frankfurtianas.

Em seguida ordenaremos a reflexão sobre os textos que serão analisa-dos, extraindo de cada um os elementos que compõem as relações entre Democracia e Esfera Pública.

Ao final, faremos algumas conexões com debates atuais, nos quais a discussão realizada desemboca e em grande medida contribui, com ênfase, porém, no debate sobre a importância de uma TV Pública, na esteira da formação de uma opinião pública crítica que seja capaz de discutir, inte-ragir e transformar na sociedade em que vive. Tal análise será sucedida de uma breve conclusão, que retomará as discussões travadas ao longo do texto de forma a apresentar um panorama amplo e concreto sobre os temas Democracia e Esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas.

1. As bases do pensamento de Jürgen Habermas: Adorno e Horkheimer, diagnósticos de um tempo

O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como prin-cípio de todas as relações (...). Enquanto soberanos da natureza, o deus-cria-dor e o espírito ordenador se igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando (...). O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é aPage 221alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comportase com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las2

.

Falar das bases do pensamento de Jürgen Habermas é um passo neces-sário para o esforço de compreender a amplitude de suas reflexões. Esta será a primeira missão deste trabalho. Por questões didáticas, a opção feita aqui é por investigar as análises de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, autores pertencentes à primeira geração da Escola de Frankfurt e precur-sores da chamada Teoria Crítica, ainda que a menção expressa ao pensa-mento de pensadores como Karl Marx, Friedrich Hegel e Immanuel Kant fossem necessária para esse entendimento, e não possam ser ignoradas. De todo modo, tais idéias permanecem implícitas ao longo deste primeiro item, e serão levantadas oportunamente.

Da mesma maneira, falar em Teoria Crítica exige uma breve distinção sobre seus componentes e sobre aquilo que permite que uma gama rela-tivamente extensa de pensadores e idéias sejam vista como uma unidade homogênea de pensamento. Como aponta Márcia Tiburi, o vínculo que se estabelece entre os autores da chamada teoria crítica é mais tênue do que comumente se estabelece. E esse vínculo é marcado, sobretudo, pela conciliação entre a relação teoria e prática, que exala da metafísica enquan-to teoria da mediação em Adorno 3 com o contraponto estabelecido por Horkheimer entre teoria tradicional e teoria crítica, e que aponta para as virtudes de um pensamento pós-cartesiano e de uma crítica sistemática ao método matemático e às peripécias da razão subjetiva.

No mesmo sentido encontramos a reflexão de José Bolzan, que orienta:

O núcleo intencional da Teoria Crítica concentra a retomada das dimensões reflexiva e crítica da razão visando reorientá-la no rumo do esclarecimento ePage 222da emancipação, compreender e explicar a racionalização capitalista, o ani-quilamento das forças negativas, a coisificação do homem e a fetichização da mercadoria4

.

Porém, devemos reconhecer em todos os textos frankfurtianos (que vão de Adorno e Horkheimer até a chamada terceira geração, representada pelo filósofo Axel Honneth, passando pelo próprio Habermas) que a marca é a busca pelo caminho perdido da emancipação que impregnava os ideais filosóficos da Ilustração. E falar em emancipação é retomar um fragmento importantíssimo, de um autor cujas reflexões foram presentes a todos os pensadores do Instituto de Pesquisa Social: o texto Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? 5 , do filósofo alemão Immanuel Kant.

Nesse texto, Kant já alertava para a necessidade de se sair do estado da menoridade, ou seja, do estado no qual o homem não pensaria por si só, sendo, pelo contrário, dirigido por autoridades externas (o Rei, a autorida-de eclesial). O autor credita maior destaque ao uso público da razão , como forma de superação desse estado de menoridade, do que a uma revolução dirigida a derrubar um déspota. Ainda que para o filósofo de Königsberg tal uso devesse se restringir a uma comunidade de leitores, ou seja, a um público específico (ainda que a necessidade de diferenciação retorne, sob outra roupagem, na caracterização do que Habermas chamou de com-partilhamento do mundo da vida), é clara a distinção entre a noção de público, ou seja, de coletividade, e a noção de privado, de uma razão que se encerra no sujeito e cujo uso se restringe às atividades mecânicas das funções profissionais.

Ao mesmo tempo, elegia uma série de fatores responsáveis por mante-rem os homens no estado de menoridade, no qual lhes seria suprimida a capacidade de agir e pensar por conta própria, faltando-lhe, porém, aquilo que o tempo não lhe permitiu observar, e que depois seria exaustivamente discutido por outro autor alemão: Karl Marx: o mercado.

Feitas essas notas preliminares e elegidos os autores, indicaremos os tópicos que serão discutidos aqui, no sentido de buscar fundamentos para a discussão habermasiana sobre Democracia e Esfera Pública, consistindoPage 223num recorte teórico que, pelo propósito apresentado, trará parcialmente seus elementos, a partir as idéias dos autores elencados. O primeiro tópico a ser abordado, nesse sentido, é a discussão sobre a crise da razão, a par-tir de Adorno e Horkheimer, caminhando especificamente na abordagem do texto O Eclipse da Razão , com a distinção entre razão objetiva e razão subjetiva. Em seguida, discutiremos a importância do conceito “esclareci-mento”, amalgamado na expressão kantiana de Aufklärung . Por fim, ana-lisaremos a penetração das idéias de Habermas na esteira do pensamento franfkurtiano, abrindo as portas, dentro de sua teoria, para o debate entre Democracia e Esfera Pública.

Podemos afirmar que a primeira geração da Escola de Frankfurt carre-ga consigo a marca de profundo pessimismo com as opções totalitaristas de sua época, num contexto de intolerância, de genocídio e de sistemática violação dos direitos humanos, sobretudo durante o regime nazista, da qual todos, de Adorno e Horkheimer a Otto Kircheimer, Erich Fromm, Leo Löewenthal, Herbert Marcuse e Walter Benjamin, foram, direta ou indire-tamente, vítimas. Tal sentimento dirigia-se à constatação de que a emanci-pação, que veio a reboque do chamado projeto filosófico da modernidade, não se consolidou.

Esse pessimismo pode ser percebido nos escritos de Adorno e Horkheimer logo que se estabeleceram nos Estados Unidos, na Universidade de Columbia, na segunda metade dos anos 40 do séc. XX. Um dos textos fun-damentais desse período e dessa parceria, denominado Dialética do Esclarecimento , traz um retrato fiel da época, e sintetiza claramente o posiciona-mento dos dois filósofos a partir uma retrospectiva histórica que remonta à ilustração até o que então era o tempo presente. Com eles:

A credulidade, a aversão, a dúvida, a temeridade no responder, o vangloriarse com o saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso a con-ceitos vãos e experimentos erráticos: o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar 6 .

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Assim, se para Adorno e Horkheimer “o trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” 7 , tal caminhar levou ao aprofun-damento da alienação...

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