Estrutura e função da norma jurídica em Hans Kelsen - e a discussão sobre a resposta correta

AutorJoão Maurício Adeodato
Ocupação do AutorLivre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas69-86
ESTRUTURA E FUNÇÃO DA NORMA JURÍDICA
EM HANS KELSEN – E A DISCUSSÃO SOBRE A
RESPOSTA CORRETA
João Maurício Adeodato
Livre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Titular
da Faculdade de Direito do Recife. Pesquisador 1-A do CNPq. Currículo completo em:
http://lattes.cnpq.br/8269423647045727
Sumário: 1. O contexto histórico e dois problemas. 2. A teoria da moldura e a norma fun-
damental de Kelsen. 3. A estrutura normativa em Kelsen e seus críticos. 4. Uma tese pela
compatibilidade entre a teoria pura e uma crítica retórica.
1. O CONTEXTO HISTÓRICO E DOIS PROBLEMAS
O objetivo deste artigo é tornar os aspectos fundamentais da obra de Kelsen, tido
por muitos como o maior jurista do século XX, acessível aos que pretendem um apro-
fundamento posterior indo às obras do próprio autor. Tomam-se por base os livros Teoria
pura do direito e Teoria geral das normas.
Aplicando a perspectiva historicista da retórica, sempre é preciso compreender o
contexto em que as estratégias (retóricas) contidas nessa obra aparecem1.
No continente europeu, a princípio na França, o direito positivo passa por grande
transformação, na passagem dos séculos XVIII a XIX, com a derrocada do absolutismo e
um notável crescimento de importância da lei como a fonte do direito estatal por excelên-
cia, expressão f‌iel da vontade do povo, escrita e legislada por seus legítimos representantes,
monopólio último do Estado na produção do direito posto, o único direito. Tanto essa
ideia como essa prática eram novas e revolucionárias. Com o aumento da complexidade
social, vão aparecer os dois problemas estreitamente conexos que se querem aqui destacar:
primeiro, qual a relação entre o texto geral prévio (a lei) e o sentido desse texto diante do
caso concreto; depois, o enfraquecimento do princípio da separação de poderes diante
da criação do direito pelo judiciário, a princípio no âmbito do caso concreto e depois
com decisões de caráter geral.
Vem após algum tempo a diferença entre signif‌icante e signif‌icado, sugerida pela
teoria linguística do século XX2, que vai contribuir para explicar as transformações
1. Para um resumo da perspectiva retórica adotada aqui, ver ADEODATO, João Maurício. Retórica como metódica
para estudo do direito, cap. 1 de A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos
éticos do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 47 s.
2. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971, p. 79 s. Este livro,
publicado postumamente, é considerado o marco inicial da linguística contemporânea.
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subsequentes. Essa distinção no estudo dos signos da linguagem humana é hoje óbvia
ao estudioso do direito, mas note-se desde já que Kelsen não chegou a atentar para ela.
O que a análise retórica vem ressaltar é que a complexidade social e a pulverização
das expectativas, interesses e preferências éticas fazem com que os mesmos textos legais
venham a se concretizar de modos os mais diversos nas decisões jurídicas, isto é, au-
mentem as possibilidades de criar signif‌icados distintos para os mesmos signif‌icantes e
levem por vezes a um voluntarismo na decisão concreta, exercida sobretudo pelo poder
judiciário.
A evolução desse distanciamento entre signif‌icantes e signif‌icados jurídicos aparece
nitidamente na relação entre os conceitos de lei e norma, por exemplo. No começo do
positivismo, com o legalismo exegético, lei e norma são praticamente sinônimas e não
há consciência da distinção linguística entre signif‌icante e signif‌icado:
A aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Sub-
mete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato
determinado3.
Entende-se “norma” como um signif‌icante – o texto da lei – já portador de um
signif‌icado intrínseco, “correto”, seu signif‌icado próprio.
Depois da Escola Histórica, da Escola do Direito Livre e de outras tendências, que
criticaram a concepção iluminista dentro do positivismo, Kelsen vai dizer que o texto
da lei é uma “moldura” (Rahmen) que separa as possibilidades de decisões devidas das
indevidas, mas que, dentro dessas três ou dez devidas, não é possível distinguir uma
única correta, ou seja, na linguagem da semiótica posterior, que um mesmo signif‌icante
pode ter vários signif‌icados. E hoje autores como Friedrich Müller af‌irmam que a inter-
pretação da norma jurídica é constitutiva da própria norma jurídica, o que o faz dizer
que o texto elaborado pelo legislador é apenas um “dado de entrada” para a construção
do signif‌icado normativo diante do caso concreto.
Em outras palavras, a evolução do positivismo também pode tomar o exemplo da
generalidade: na aurora do positivismo toda norma jurídica é dotada de generalidade;
depois, Kelsen defende que há normas jurídicas gerais e individuais; hoje, Müller con-
sidera que toda norma jurídica é individual4.
O segundo problema diz respeito à criação do direito pelo poder judiciário, que
Kelsen foi um dos primeiros a reconhecer, um debate aceso até hoje, mormente no Brasil
do chamado “ativismo judicial” ou da “inércia legislativa”. Com efeito, a separação de
poderes é um princípio relevante no direito ocidental e uma metarregra tão importante
no sistema brasileiro que foi alçada à categoria de cláusula pétrea. De acordo com os
primeiros positivistas, como Montesquieu, cabe ao judiciário decidir somente quando
provocado, restrito ao caso concreto, e agir com competência técnico-jurídica, neutra-
3. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro / São Paulo: Freitas Bastos, 1957, p.
19.
4. Como paradigmas desses três estágios evolutivos: MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de la Brede
et. De l’Esprit des Lois. Paris: Garnier, nouvelle édition, s/d, Livro XI, 6, e Livro VI, 3. KELSEN, Hans. Allgemeine
Theorie der Normen (hrsg. von Kurt Ringhofer und Robert Walter. Wien: Manz-Verlag, 1979, p. 39 e 179 s. MÜL-
LER, Friedrich. Strukturierende Rechtslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, p. 251 s.
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