Sanções jurídicas: releitura à luz da prevenção e da proteção eficaz dos direitos

AutorBruno Leonardo Câmara Carrá
Ocupação do AutorDoutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo com pós-doutoramento pela Scuola di Giurisprudenza della Università degli Studi di Bologna. Juiz Federal e Professor Universitário
Páginas43-58
SANÇÕES JURÍDICAS: RELEITURA À LUZ
DA PREVENÇÃO E DA PROTEÇÃO EFICAZ
DOS DIREITOS
Bruno Leonardo Câmara Carrá
Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo com pós-doutoramento
pela Scuola di Giurisprudenza della Università degli Studi di Bologna. Juiz Federal e
Professor Universitário.
Sumário: 1. Um pouco de mitologia (introdução). 2. Direito e sanção. 3. As insuciências do
controle a posteriori. 4. Sanções coincidentes e não coincidentes. 5. As medidas de prevenção
como sanção antecipada: a iminência como ilícito.6. Referências.
1. UM POUCO DE MITOLOGIA (INTRODUÇÃO)
Proponho começar da seguinte forma: uma releitura intrinsecamente jurídica do
conhecido mito de Sísifo. Conta-se, como todos sabemos, que Sísifo era o mais astuto dos
homens. Por algum tempo chegou até mesmo a enganar Tânatos, atando-lhe a grilhões
de maneira que, quando o deus da morte foi lhe buscar, terminou sem poder ceifar a vida
de mais ninguém por determinado tempo. Tânatos acabou sendo libertado por Ares e
Sísifo, então, foi arrastado para o inframundo.
Contudo, ele ainda tinha um último ardil: antes de baixar ao inferno, combinou
com sua mulher para que ela não f‌izesse o sacrifício cerimonial aos mortos. Assim, um
lamurioso Sísifo f‌indou por convencer Hades a permitir seu regresso ao mundo supe-
rior, concessão jamais feita a qualquer mortal. Para tanto nosso malicioso personagem
disse a Hades que voltaria ao inferno seu deus do inframundo lhe desse a mencionada
oportunidade de lá sair apenas para poder castigar sua relapsa esposa. E o que fez Sísifo
depois de libertado? O que todo e qualquer sagaz faria em uma situação idêntica: fugiu!
Viveu, segundo diz a lenda, por vários anos em Corinto até que, com a ajuda de
Hermes, foi novamente capturado e obrigado retornar ao inferno outra vez. Só então a
ordem pode ser restabelecida. Pela ignominiosa transgressão, Sísifo foi f‌inalmente con-
denado arrastar uma pedra, encosta acima, a qual sempre rolava para baixo antes que o
cume fosse atingido, de modo que o trabalho sempre recomeçava. A punição, além de
eterna, tinha um elemento adicional de vingança, requintadamente preparado: já que se
considerava o mais inteligente dos mortais, recebeu Sísifo o mais fastidioso e inútil dos
castigos por haver desdenhado os deuses.1
1. Cf. CAMUS, Albert. El Mito de Sísifo. Tradução de Luís Echávarri. Buenos Aires: Losada, 1953.
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BRUNO LEONARDO CÂMARA CARRÁ
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Agora o que nos interessa! Não obstante ter sido Sísifo devolvido aos infernos, o
que de alguma maneira diminuiu as consequências de seus atos, tenhamos em conta
que o rigor de seu castigo já nada mais poderia fazer para reverter a ilicitude de seu com-
portamento. Um morto havia escapado de Hades, alterando a ordem cósmica, e a pena
aplicada a Sísifo, por maior que fosse, não seria capaz de reverter esse fato.
Com efeito, a sanção aplicada não iria, por si somente, ser capaz de fazer desapa-
recer sob o aspecto fenomenológico os conturbados efeitos da transgressão de Sísifo.
O que estava feito, não apenas estava feito como não poderia ser desfeito, já que nem
os deuses tinham o poder de fazer o tempo retroceder. Aliás, o tempo e o destino, eles
próprios material de incontáveis lendas e tragédias, eram incontroláveis pelos deuses e,
por isso mesmo temido até mesmo por Zeus.2 Assim, toda pena imposta a Sísifo, por mais
inclemente que fosse, seria apenas um paliativo. Se os deuses pensaram que por meio
delas poderiam reverter sua façanha, estavam, na verdade, ingenuamente enganados.
Aqui, inclusive, é o caso de lembrar de outro mito ainda mais evidenciador da
pouca ef‌icácia das sanções que se aplicam como castigo: Prometeu, que também desa-
f‌iou o poder do Olimpo ao roubar o fogo sagrado entregá-lo aos homens. Pela afronta,
que se diferencia das de Sísifo por seu caráter altruísta, Prometeu foi acorrentado em
uma montanha e tinha seu fígado todo dia comido por uma águia, já que todo dia ele
se regenerava para que seu sofrimento continuasse sem f‌im. A inutilidade do trabalho
de Sísifo ou o fígado de Prometeu diuturnamente dilacerado e recomposto constituem
faces de uma mesma moeda.
São alegorias que ref‌letem f‌icticiamente aquilo que tentaremos demonstrar com
este trabalho: que os esquemas jurídicos no geral dão à sanção um caráter limitado,
nela enxergando muitas vezes apenas a reação por direito já violado. Ao assim proceder,
entretanto, termina-se por incidir em um lamentável reducionismo ontológico que ob-
nubila a compreensão desse importante elemento do Direito e, portanto, do fenômeno
jurídico como um todo.
A sanção jurídica não tem como principal função inf‌ligir castigo ou pena, salvo
para um grupo muito reduzido de autores, como Alf Ross, que nela enxergam apenas um
instrumento de castigo em termos estritos. 3 Se isso existiu no passado, com as vinganças
privadas, por exemplo, nada mais o justif‌ica. Modus in rebus: não se nega que a sanção
exista como forma de castigo, há sanções que realmente revelam esse elemento punitivo,
o que não se pode é, de forma pueril, predicar que haja uma correlação sincera entre sua
2. As Moiras eram as f‌ilhas de Zeus com Têmis, Deusa da Justiça. Também denominadas f‌ilhas da noite, represen-
tavam o rigor e a inafastabilidade do destino que alcançava até mesmo os deuses. A inafastabilidade do destino
consistiu tema recorrente na Grécia antiga. Na mais expoente das tragédias que o tinham como pano de fundo, o
Édipo Rei, após vazar as órbitas dos olhos, diz o desgraçado rei de Tebas, agora arrasado pela descoberta de que não
poderia lutar contra o imponderável destino: “Nuvem negra de trevas, odiosa,/que zombaste do céu sobre mim,/
indizível, irremediável,/que não posso, não posso evitar!/Infeliz! Infeliz outra vez!/Com que ponta aguçada me
ferem o agulhão deste meu sofrimento/e a lembrança de minhas desgraças?” (SÓFOCLES. Édipo Rei In A Trilogia
Tebana. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 10 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 87-88).
3. Nesse sentido: “[…] and the only good grounds the judge can offer for sentencing a man for theft is that man in
question is guilty of theft. It is no justif‌ication for sentencing the man that society or the man himself will benef‌it
from his being punished.” (ROSS, Alf. On Guilt, Responsibility and Punishment. Berkley: University of California
Press, 1975. p. 28).
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