O estudo de caso na sociologia dos tribunais: o HC 126.292 e as ADCs 43 e 44/Case studies in the sociology of courts: the HC 126.292 and ADCs 43 e 44.

AutorSantos, Caio Santiago F.

Introdução

A sociologia dos tribunais é um campo interdisciplinar de pesquisa que se propõe a analisar os tribunais em sociedade, e não de forma apartada ou isolada (SANTOS, 2016, p. 11). Nessa perspectiva, o estudo de caso é um método bastante útil, pois combina diversas técnicas de pesquisa para compor um quadro empírico amplo sobre a atuação dos tribunais na sociedade. Como afirma Yin (2001, p. 32), o estudo de caso "investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real", e não em ambientes "controlados". No entanto, ainda são poucos os trabalhos no Brasil que mobilizam o estudo de caso para a análise dos tribunais (1). Por isso, este artigo pretende indicar e defender algumas vantagens desse método de pesquisa, diferenciando-o de algumas abordagens atuais no Brasil (2).

O objetivo deste trabalho é refletir sobre conceitos e técnicas de pesquisa que podem ser utilizados no estudo de caso sobre os tribunais no Brasil. Para isso, as principais referências são os trabalhos de Boaventura de Sousa Santos na sociologia do direito. Para embasar a presente reflexão, são retomados dados e análises oriundos de estudo de caso realizado em pesquisa de doutorado sobre o Habeas Corpus 126.292 e as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44 julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, este artigo almeja uma contribuição sobretudo a nível teórico e metodológico sobre a sociologia dos tribunais no Brasil.

Este trabalho está organizado em três partes. Primeiro, são discutidos alguns conceitos que podem ser úteis para o estudo dos tribunais: as pressões na tomada de decisão, a heterogeneidade interna e as diferentes funções que exercem em sociedade. Segundo, à luz dos conceitos discutidos, indica-se como o estudo de caso pode se inserir na sociologia dos tribunais e se reflete sobre as formas de articulação de distintas técnicas de pesquisa. Na terceira parte, demonstra-se como os conceitos e técnicas de pesquisa foram utilizados em estudo de caso sobre o HC 126.292 e as ADCs 43 e 44. O foco são os aspectos metodológicos do estudo de caso realizado em pesquisa de doutorado, sem retomar por completo seus dados, análises e resultados.

  1. Conceitos para uma sociologia dos tribunais

    Em pesquisas sobre os tribunais é fundamental articular teoria e empiria a fim de produzir análises abrangentes, sofisticadas e com profundidade. Nos seus trabalhos, Boaventura de Sousa Santos (2002, p. xviii; p. 2009, p. 19) defende um método de "teoria situada" [grounded theory] que evite tanto os riscos do "teoricismo", de um lado, quanto do "empiricismo", de outro. O primeiro tende a predominar na tradição europeia e trabalha apenas com o raciocínio dedutivo e o diálogo com a literatura. Dessa forma, não se propõe a produzir dados empíricos para demonstrar hipóteses ou para desenvolver a própria teoria. O segundo, com mais força nos Estados Unidos, defende que a "Verdade científica" é decorrente apenas da empiria, que seria responsável por todo o mérito de uma pesquisa, e busca transformar o estudo de fenômenos sociais sempre em "experimentos controlados". Esse empiricismo, como destaca Santos (1983, p. 12), tende a produzir certo "descritivismo", isto é, a mera descrição de eventos e dos padrões e regularidades nos objetos de estudo. Como sintetiza Santos (1980, p. 49), "é tão urgente produzir investigação empírica quanto evitar o empiricismo" (3).

    Dessa forma, estudos de caso sobre os tribunais não podem prescindir de uma discussão teórica prévia (4). Em linhas gerais, uma teoria fornece conceitos, indica hipóteses, questões e aspectos relevantes a serem observados na produção de dados e orienta a análise desses dados (5). Como afirma Santos (1982, p. 13), é uma "ilusão" acreditar que "os dados têm uma existência ateórica", isto é, que "são constatações puras". Mesmo uma pesquisa com contribuições exclusivamente empíricas acaba empregando, de modo explícito ou implícito, alguns pressupostos teóricos e conceitos. Para realizar uma pesquisa sobre os tribunais é necessário, portanto, apresentar, delimitar e discutir os conceitos que a orientam (6). Nesse sentido, um estudo de caso é sempre desenhado a partir de determinados aportes teóricos, o que se faz a seguir.

    1.1. As pressões na tomada de decisão

    Na análise da atuação dos tribunais, uma distinção teórica relevante é entre a tomada de decisão e sua posterior justificação. Hans Kelsen nota essa distinção. Em texto de 1929, Kelsen (2000, p. 82) incorpora uma tese da "Escola de Direito Livre", e sustenta que é uma "ilusão" a ideia de que existe apenas uma decisão judicial correta e que o juiz está rigidamente adstrito à lei. Como desenvolve na segunda edição da Teoria Pura do Direito, a lei fornece apenas uma moldura para a decisão judicial, no interior da qual existem múltiplas possibilidades igualmente corretas. Na verdade, acrescenta Kelsen (2006, p. 388-394), até mesmo uma decisão judicial fora da moldura pode ocorrer. No processo de tomada de decisão e aplicação do direito podem incidir diversos fatores, como "normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais [...]" (KELSEN, 2006, p. 393). Ou seja, não incidem apenas os fatores estritamente relacionados às normas jurídicas. Conclui então que "todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, [...] é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado" (KELSEN, 2006, p. 388). Na esteira de Kelsen, Bobbio (2016, p. 119) sustenta que muitas vezes "a decisão vem, de fato, antes dos argumentos que a justificam." (7)

    Essa distinção entre o processo de tomada de decisão, de um lado, e sua justificação posterior, de outro, é relevante pois no âmbito dos tribunais acontecem em momentos distintos, e não de forma simultânea. No caso de um ministro do STF, a tomada de decisão, sobretudo nos casos mais relevantes, ocorre em diversos momentos do seu cotidiano, seja no gabinete por meio do diálogo com assessores e advogados das partes, seja em eventos fora do gabinete. A sessão de julgamento é o momento de justificação da decisão tomada, com a apresentação do voto anteriormente elaborado (8). Na sociologia dos tribunais, é necessário, portanto, analisar o processo de tomada de decisão, e não apenas descrever a justificação das decisões judiciais.

    Na tomada de decisão podem incidir pressões oriundas de indivíduos e grupos sociais com interesse no resultado do processo judicial. Nesse sentido, a atuação dos magistrados está inserida em contextos com intensos conflitos. Não ocorre em condições abstratas ou consideradas "ideais". Em sociedades capitalistas, as elevadas desigualdades fazem com que alguns grupos tenham mais condições de exercer pressão sobre os tribunais do que outros. Na esteira de Galanter (1974), são os grandes grupos econômicos que detêm mais recursos para influenciar a tomada de decisão. Embora "formalmente neutro" entre "possuidores" e "não-possuidores", o sistema jurídico tende a "perpetuar e aumentar as vantagens dos primeiros" (GALANTER, 1974, p. 103-104, tradução minha). Nesse sentido, são os grupos com mais recursos, poder e status que detêm mais condições para mobilizar o direito (9).

    Além dos grandes grupos econômicos nacionais, os tribunais brasileiros estão sujeitos também a pressões oriundas de interesses externos. Enquanto instituições, estão inseridos em Estado com posição subordinada nas relações internacionais. A noção de soberania, enquanto uma elevada independência em relação a interesses provenientes de outros países, tem sido uma característica historicamente restrita aos Estados de alguns países da Europa e dos Estados Unidos (10). Por isso, o Judiciário brasileiro lida não apenas com pressões internas, dos diversos grupos e classes sociais, mas também com pressões externas oriundas dos Estados de países centrais, de agências internacionais e de grandes empresas estrangeiras (11).

    Embora com menos recursos e poder, as classes populares e movimentos sociais também exercem alguma influência sobre os tribunais no Brasil. No sentido amplo proposto por Santos (2006a, p. 36-37), movimentos sociais abrangem diversas práticas de luta coletiva contra formas de exclusão e de opressão social. No Brasil, a pressão de movimentos sociais é relevante uma vez que possuem certa tradição de organização e mobilização, isto é, possuem força social. Além disso, como afirmam Abers, Serafim e Tatagiba (2014, p. 331), atuam não apenas por fora, mas também "por dentro das instituições do Estado", inclusive os tribunais.

    Em suma, para explicar a atuação dos tribunais é necessário considerar as pressões que incidem nos seus processos de tomada de decisão (12). As análises sobre o Judiciário não podem se limitar à sua relação com demais poderes. Devem levar em conta também e sobretudo sua relação com os distintos grupos sociais que atuam no Judiciário para avançar interesses e agendas (13). Em processos judiciais em que seus interesses estejam em jogo, é de se esperar relevantes pressões de agentes estrangeiros, grandes grupos econômicos brasileiros e movimentos sociais.

    1.2. A heterogeneidade e a homogeneidade nos tribunais

    Outro conceito relevante na análise dos tribunais é a heterogeneidade interna, que está presente em diversos trabalhos de Santos. Ao analisar a atuação do Judiciário em conflitos urbanos em Recife, Santos (1983, p. 53) identificou uma "assimetria e heterogeneidade das actuações jurídico-políticas do Estado" em razão, sobretudo, das distintas pressões em torno dos processos judiciais, oriundas dos proprietários, de um lado, e ocupantes do imóvel e Igreja católica, de outro. Em algumas situações os tribunais atenderam de forma rápida e eficaz aos pedidos de despejo dos proprietários, enquanto em outros foram satisfeitos alguns interesses imediatos dos ocupantes (SANTOS, 2016, p. 283-289). Nesse sentido, casos juridicamente semelhantes de ocupação de imóveis vazios apresentaram resultados judiciais distintos (SANTOS, 1983, p. 53), a depender da força e das...

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