Exclusao social, regulacao do trabalho e crise do sindicalismo nas perspectivas critica e utopica de Boaventura de Sousa Santos/Social exclusion, labor regulation and the crisis of trade unionism in the critical and Utopian perspectives of Boaventura de Sousa Santos.

AutorNeto, Silvio Beltramelli

Introdução

O olhar de Boaventura de Sousa Santos para a trajetória da vida humana em sociedade é ao mesmo tempo holístico e repleto de particularizações. Suas reflexões atacam, de um lado, a produção do conhecimento, recusando qualquer visão científica hegemônica eurocêntrica, e, de outro lado, as relações sociais típicas da modernidade liberal capitalista, procurando oferecer-lhes alternativas e valendo-se sempre de uma enorme gama de categorizações e teses aplicadas tanto ao seu diagnóstico das ocorrências sociais, quanto ao seu portfólio de alternativas ao que diagnosticara criticamente.

Boaventura afirma-se socialista, mas em termos próprios, no sentido de uma democracia sem fim (SANTOS, 2012, p. 20), o que denota sua declarada inspiração nos preceitos comunitaristas de Jean-Jacques Rousseau. Diz-se, igualmente, um utópico. Nada obstante, não formula uma teoria geral e hermética da emancipação, preferindo dedicar-se a examinar diferentes iniciativas emancipatórias ao redor do mundo.

Sua crítica parte da ideia de que a modernidade teria anunciado e não cumprido duas importantes promessas: a solução dos problemas de distribuição, os quais levam populações inteiras à privação de condições mínimas de sobrevivência, e a "democratização política do sistema democrático", entendida esta como a inserção livre das classes populares no sistema político. Sustenta que modernidade ocidental legou uma realidade de fragmentação extrema, que tem como faceta mais desumana o aprofundamento da exclusão social (SANTOS, 2013, p. 127).

Boaventura (2010, p. 260-261) distingue desigualdade e exclusão social, embora as aponte ambas como dois tipos ideais modernos e concomitantes, que se estabelecem de modo permanente, a partir da convergência entre modernidade e capitalismo, no século XIX.

A desigualdade não é exatamente excludente, porque existe em um quadro relacional e hierarquizado de privilégios, cujo critério de diferenciação é essencialmente econômico. O princípio que rege a desigualdade é o da integração social, pois pessoas estão inseridas em um contexto de fruição de direitos, ainda que em distintas intensidades. Já a exclusão social rege-se pelo princípio da segregação, porquanto o excluído encontra-se fora do quadrante em que há apenas desigualdade, sendo alijado da possibilidade de fruir direitos e, tampouco, dereivindicá-los. O critério excludente vai além do aspecto econômico, alcançando atributos socioculturais, como gênero, raça, orientação sexual, crença religiosa, etnia, nacionalidade, deficiência física ou mental, ficha criminal, etc.

Enquanto fenômenos ínsitos à convergência da modernidade ocidental com o capitalismo, a desigualdade e a exclusão social comportaram dois tipos de enfrentamento em permanente tensão, quais sejam, a emancipação, orientada à prevalência da igualdade e da inclusão social, e a regulação, pautada pela gestão da desigualdade e da exclusão social com vistas a ordená-las (SANTOS, 2008, p. 21; 2010, p. 260).

As dualidades desigualdade/exclusão social e emancipação/regulação impulsionaram as tradições teóricas da modernidade. Não obstante, Boaventura diz ser Marx o principal teórico da desigualdade e da emancipação e Foucault, o principal teórico da exclusão social. Já os pensadores do liberalismo político respondem pelas propostas de cunho regulatório (SANTOS, 2008, p. 22; 2010, p. 260). A história da modernidade ocidental, sobretudo a dos países centrais (hegemônicos), é a história da precedência da regulação social sobre a emancipação social, na epistemologia e na conformação social, política e jurídica, embora a gestão controlada das desigualdades e da exclusão não seja obra apenas de política de estado, mas igual consequência de lutas sociais (SANTOS, 2010, p. 289).

Dentro desta complexa e multifacetada construção teórica, os temas da regulação do trabalho e da crise do sindicalismo aparecem como elementos postos em análise não isoladamente, mas, no contexto das críticas e propostas alusivas à exclusão social.

O presente artigo tem o propósito de, mediante revisão bibliográfica das obras ao final referidas, retomar as passagens de parte dos escritos de Boaventura dedicadas ao exame da trajetória moderna da regulação do trabalho e da crise sindicalismo dentro do marco analítico da exclusão social, sistematizando seus argumentos críticos e proposições utópicas sobre ambos os temas. Para tanto, o texto propõe-se a realizar, na primeira parte, um apanhado do pensamento básico do Sociólogo Português a respeito (i) das etapas históricas de associação entre os elementos do tripé da regulação social moderna (Estado, Mercado e Comunidade), (ii) da crise do Contrato Social e (iii) das suas propostas de transformação societal orientada à inclusão social. Na segunda parte, são sistematizadas as reflexões críticas, teses e propostas sobre o trabalho, sua regulação e a crise do sindicalismo.

É preciso que se registre que a sistematização aqui apresentada respeita o conteúdo dos conceitos adotados pelo autor estudado e sua evolução, conquanto não siga uma ordem cronológica de textos, apresentando uma associação de ideias apreendidas e amalgamadas, de modo personalíssimo, por quem redigiu este artigo, o que o faz, por certo e inescapavelmente, a expressão de uma leitura pessoal sujeita a contrapontos.

1 Premissas críticas da realidade social: prevalência do Mercado e crise do Contrato Social

1.1 Regulação versus emancipação e a relação entre Estado, Mercado e Comunidade

A regulação social assenta-se em três princípios: do Estado, do Mercado e da Comunidade (SANTOS, 2002, p. 122; 2008, p. 21). A associação da modernidade ocidental com o capitalismo consagrou a ascensão do princípio do Mercado sobre os demais, em um processo gradual que se confunde com o próprio processo de transformação e desenvolvimento do capitalismo como padrão societal. A relação do capital (Mercado) com o Estado e, por conseguinte, com o direito, pode ser verificado em três etapas históricas, identificadas essencialmente nos países centrais, considerando-se que as vicissitudes dos países periféricos e semiperiféricos ostentam níveis distintos de desenvolvimento econômico, muitas vezes ligados à questão colonial (1).

A primeira etapa é a do "capitalismo liberal" e remonta ao século XIX, quando a filosofia positivista enfrenta a explosão da dualidade emancipação/regulação com a deslegitimação teórica das utopias e o atrelamento das formas de progresso à racionalidade do capital. O conhecimento-regulação positivista usa a lógica das leis causais ordenadoras a bem de saberes "normalizadores" de grupos convulsionados pela desigualdade e exclusão.

O paradigma epistemológico moderno ocidental alcança o direito, cientificizando-o e, assim, atribuindo-lhe a neutralidade tipicamente positivista. A afirmação, nesta época, da distinção entre direito público e privado alimenta a ilusão no sentido de que o segundo é espaço apenas à disposição da esfera das relações particulares, ocultando sua real vinculação com o Estado (SANTOS, 2002, p. 130-133). Neste interregno, o direito administrativo encarrega-se de assentar o distanciamento entre Estado e cidadão, em prol do mercado livre e autorregulado pelos contratos, segundo padrões mínimos estipulados pelo direito privado, ao passo em que o direito constitucional arrogou-se a proteção das liberdades individuais, tutelando o indivíduo em face do arbítrio estatal.

A segunda etapa é a do período do "capitalismo organizado", no início do século XX, quando já se admite que as promessas da modernidade não seriam cumpridas, entre elas a da eliminação da desigualdade e da exclusão social, extremadas pela Revolução Industrial. O Mercado tem na expansão do direito privado o seu veículo de autonomização, mas defronta-se com as convulsões sociais estimuladas pela exploração do trabalho e pelo conhecimento-emancipação utópico (por exemplo, com Marx), as quais ainda resistiam à sua neutralização (SANTOS, 2002, p. 135-142).

O paradigma da modernidade teve, pois, que ser redefinido, e o Estado foi chamado a retomar a intervenção nas relações privadas, com a missão de conciliar interesses, equilibrar ansiedades e amenizar conflitos. Entra em cena o Estado-Providência, caracterizado pela gestão econômica keynesiana e pelo Direito Social (distributivo), que contemplou uma série de conquistas jurídicas nas áreas da educação, saúde, habitação, seguridade social e trabalho, concomitantemente com o polêmico fenômeno da politização do direito, consubstanciado na interferência estatal na economia através do direito econômico, altamente suscetível a negociações e a regulações efêmeras. Neste panorama, normalizam-se também os ímpetos emancipatórios (SANTOS, 2002, p. 135-142).

A terceira etapa tem no "capitalismo desorganizado" a sua marca. A referência à "desorganização" é puramente metafórica, a significar desconcentração, porquanto permanece o capitalismo extremamente organizado, conquanto menos formatado pela produção ao modo fordista e mais disseminado em meios de produção geográfica e conceitualmente fragmentados e de reprodução menos concretos (financeirização). Com seus opositores--v.g. o movimento socialista e a mobilização sindical--domesticados, o capitalismo novamente impõe o distanciamento estatal das relações privadas e o Estado-Providência entra em crise, acusado de excessiva burocracia, intervencionismo abusivo, déficit fiscal, corrupção e seletividade redistributiva. Ao direito regulatório imputa-se suposta ineficácia e hipertrofia intervencionista.

Já os direitos humanos têm seu potencial radicalmente democrático neutralizado desde o liberalismo político, submetendo-se a uma concepção eurocêntrica limitada de igualdade, porque excludente de tudo o que é diferente e difusora de um discurso de homogeneidade que pode degenerar em violência exclusivista (SANTOS, 2003, p. 30).

Neste período, o neoliberalismo--que corresponde a uma versão do conservadorismo (SANTOS, 2003, p. 6)--estabelece-se e...

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