De qual vida estamos falando? Análise crítica dos discursos sobre o aborto e perspectivas

AutorCarla de Paiva Bezerra
CargoBacharel em Direito pela UnB
Introdução

A prática do aborto já foi documentada em diversas culturas e épocas. Embora amplamente praticado no mundo greco-romano, o aborto foi condenado pela moral cristã desde o princípio, a partir da idéia da sacralidade do dom da vida. Tema controvertido, o debate sobre a legalidade do aborto toca em diversas esferas: moral, ética e jurídica. Mas, na realidade, o tom apaixonado e, em geral, intolerante, tem sempre um forte aspecto religioso onde quer que se discuta a sua regulamentação.

Outorgado em 1940, o Código Penal Brasileiro vigente até os dias atuais tipifica a prática do aborto como crime, em suas diversas modalidades. São previstos, porém, dois permissivos penais: para os casos de estupro e risco de morte ou perigo à vida da gestante1.

Entre os anos 40 e 70 o debate sobre as características do aborto existia de forma incipiente. Neste momento, o movimento feminista a estava mais voltado para a conquista do espaço público. No Brasil, tal fato se refletiu na luta pelo direito ao voto liderado por Berta Lutz, ou na conquista por melhores condições de trabalho, igualdade salarial, licença maternidade, lutas encampadas pelas militantes comunistas e anarquistas. O debate sobre sexualidade, direitos reprodutivos, planejamento familiar, era colocado em segundo plano.

Durante os anos 70, em um momento, dentro da sociedade ocidental capitalista, de grande questionamento das instituições, dos costumes e da tradição, o tema da descriminalização do aborto passa a ter maior relevância. O movimento feminista sofre uma alteração de prioridades e, temas antes tidos como secundários, começam a se destacar, dentre eles as temáticas da sexualidade e do amor livre. Vale lembrar que é desta época o advento da pílula anticoncepcional, que traz de forma concreta a possibilidade de a mulher optar ou não pela maternidade.

No Brasil, o tema ganha maior destaque somente nos anos 80, com a constituinte. A transição para um regime democrático, acompanhada pelo alto grau de mobilização popular, trouxe inúmeras demandas e expectativas de inovações na legislação. O movimento feminista fez uma forte e organizada pressão no Congresso e a Constituição de 1988 acabou por incorporar uma série de direitos para as mulheres, especialmente nas áreas cível e trabalhista. Porém, a questão do aborto continua sem avanços.

Desde 88 até a atualidade inúmeros projetos foram apresentados para alterar a legislação do aborto. De um lado, alguns que tentam endurecer a legislação, propondo a supressão dos dois permissivos legais existentes, aumento de penas, ou mesmo que a prática do aborto passe a ser considerada crime hediondo. De outro, há inúmeros projetos que possibilitam a flexibilização da punição do aborto, quer ampliando os permissivos legais (para os casos de feto anencéfalo, com graves deformações, dentre outros), quer regulamentando a sua prática como legal em qualquer caso. O mais avançado projeto de lei foi o substitutivo apresentado à apreciação da Comissão de Seguridade Social e Saúde pela então Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) em dezembro de 2005 (PL nº 1135/91) 2. O projeto, porém, sequer conseguiu sair daquela comissão.

Em 2007, a aprovação de legislação favorável à prática do aborto em Portugal, a partir dos resultados de um plebiscito consultivo3, e as últimas declarações do Ministro da Saúde4 brasileiro, sobre a necessidade de debater o tema com a sociedade, contribuíram para que o tema fosse novamente destaque nos veículos de comunicação.

Os dois principais e antagônicos setores que movimentam o debate são: o Movimento Feminista e a Igreja Católica (e outras denominações religiosas, especialmente as cristãs), numa articulação em âmbito internacional conhecida como "Movimento Pró-Vida". Essa denominação tem origem nos Estados Unidos, onde a regulamentação do aborto tem por base uma decisão judicial da Suprema Corte e não uma lei específica, o que dá contornos diferentes ao debate5. Porém, é possível observar a transposição da mesma linha argumentativa para cada um dos lados em vários países das Américas. Se por um lado o movimento feminista é mais fragmentado e diversificado, o Movimento Pró-Vida utiliza táticas de convencimento e lobby impressionantemente parecidos.

O presente artigo tem por objetivo apresentar um panorama das linhas argumentativas de cada um dos lados, analisando-os criticamente. A partir deste confronto, e da definição de posicionamento, traçar os desafios e perspectivas da temática dentro da realidade brasileira. A metodologia utilizada é a análise bibliográfica comparativa de experiências dos Estados Unidos, Porto Rico e Brasil, dando especial atenção a este último. A análise é enriquecida pelo acompanhamento da tramitação na Câmara dos Deputados de projeto de lei sobre o tema, no período de novembro e dezembro de 2005, bem como do desenrolar do debate nos veículos de mídia brasileira até a atualidade.

Pró-Vida: a retórica dos direitos do feto

Conforme observa Dworkin6, as opiniões sobre o aborto tendem a correr em paralelo com a opção religiosa. Nas diversas denominações cristãs e no judaísmo, a idéia do aborto é, em geral, condenada por argumentações que defendem o "valor intrínseco e sagrado da vida". Porém, há diversas graduações de desaprovação, de acordo com as situações em que o aborto é praticado, existindo posições bastante liberais, que consideram o bem-estar e a saúde da mãe como elementos importantes para se determinar o grau de reprovabilidade do aborto em cada caso.

É a Igreja Católica, sem dúvida, aquela que condena a prática do aborto de forma mais inflexível, não admitindo a sua prática mesmo nos casos em que ocorra risco de vida para a mãe. Não por acaso é o principal impulsionador do movimento anti-abortista nos diversos países onde se discute a sua regulamentação. Há, é verdade, setores de fiéis que discordam das orientações papais, inclusive organizando movimentações em âmbito internacional pelo direito à prática legal do aborto: é o caso das "Católicas pelo direito de decidir" 7. Constituem, porém, um setor minoritário dentro da Igreja.

A posição da Igreja Católica com relação ao aborto é, desde 1987, de que o ser...

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