Da falta de normatividade constitucional à judicialização e ao ativismo judicial

AutorAdriana Monteiro Ramos
Páginas233-246

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1 Introdução

O presente artigo fará uma abordagem do atual estágio da normatividade constitucional brasileira, destacando as diferenças existentes entre judicialização e ativismo judicial e os caminhos percorridos pelo Judiciário brasileiro no processo de concretização de valores e fins constitucionais. 12

Inicialmente, far-se-á uma análise da evolução normativa dos textos constitucionais no cenário mundial, destacando-se a falta de normatividades dos primeiros documentos políticos, o posterior reconhecimento de sua normatividade, especialmente intensificado após a segunda grande guerra mundial, para então enfatizar a mudança paradigmática do processo interpretativo das normas constitucionais.

Em seguida, será traçado um paralelo com a realidade do poder judiciário brasileiro, cuja atuação, na última quadra, tem-se mostrado proativa, notadamente em decorrência da baixa atuação dos demais poderes e da necessidade de se dar concretude a pretensões de larga repercussão social, moral e política.

A constatação da necessidade de concretude das mencionadas pretensões, não solucionadas pelos poderes competentes, vem promovendo, paulatinamente, uma mudança na forma de interpretação da Constituição. O poder judiciário, diante das inúmeras pretensões que lhe são submetidas e da necessidade de oferecer respostas a elas, realiza direitos subjetivos de cunho social e político, ignorados pelos poderes executivo e legislativo. Este fenômeno recebe o nome de "judicialização".

O ativismo judicial, por sua vez, apesar de assemelhar-se à judicialização, dela diverge por originar-se de causa imediata diversa, qual seja, o deliberado exercício de vontade política. Enquanto a judicialização decorre do modelo constitucional, com aplicação das normas constitucionais na solução de caso específico, o ativismo judicial expande o alcance e extensão dessa mesma norma, para assim conferir a mais ampla realização dos seus fins e valores.

Quaisquer pretensões, portanto, inclusive as que envolvam questões políticas e sociais, poderão ser analisadas pelo poder judiciário (judicialização) e a sua realização (ativismo) poderá decorrer ou da aplicação da norma constitucional a situações não contempladas expressamente pelo texto; ou do reconhecimento de inconstitucionalidade Page 234 de uma dada norma/ato com base em parâmetros menos rígidos; ou ainda a partir de uma ordem de atuação ou abstenção ao Poder Público.

Feitas as necessárias considerações acerca da judicialização e do ativismo judicial, expressões da máxima normatividade da Constituição, ambos encampados pelo judiciário brasileiro, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal, abordar-se-á, ao final, os riscos do ativismo e alguns parâmetros que não podem ser vilipendiados pelo judiciário como forma de garantir a legitimidade de sua atuação.

2 Evolução histórica da normatividade constitucional

O Estado moderno tem origem no século XVI, ao final da idade média, em meio a uma sociedade feudal em processo de decadência e onde se acreditava que o poder conferido ao rei possuía origem divina. A prática jurídica herdada advinha do direito romano, ainda não sistematizado em legislações escritas.

O constitucionalismo moderno é fruto de uma reação ao poder absoluto que dominou o velho mundo até o século XVIII. A realidade social e política então vivenciadas, que concentrava o poder e o gozo de direitos apenas nas mãos do monarca e da nobreza, desencadeou o surgimento de uma filosofia reacionária, denominada jusnaturalismo, de cunho jurídico-moral, em oposição aos excessos da época. Para a teoria em comento, os direitos naturais representavam valores e pretensões cuja existência e observância prescindiam de norma escrita.

À filosofia jusnaturalista deve-se o advento do Estado Liberal e a consolidação dos valores e fins constitucionais em textos escritos. A disseminação dos seus ideais, contudo, representou, paradoxalmente, a ascensão e a decadência dessa filosofia. Se de um lado foi o 'combustível das revoluções liberais'(BARROSO, 2009, p.237a), a exemplo do iluminismo, da Revolução Francesa, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776); por outro, o jusnaturalismo viu-se cercado pela própria armadilha, pois, ao lado do iluminismo, passou a promover, num movimento inverso ao até ali traçado, a codificação desses direitos naturais3 como forma de efetivamente preservá-los.

O início do século XIX, portanto, foi marcado pela ascensão do positivismo jurídico e consequente derrocada dos direitos naturais, os quais, "[...] cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam mais a revolução, mas a conservação" (BARROSO, 2009, p. 237a). O jusnaturalismo deixa o centro das atenções e assume posição secundária.

É nesse processo de transição, de superação do modelo jusnaturalista pela teoria positivista, que surgem as primeiras 'Constituições' escritas, fortemente influenciadas pelo ideal jusnaturalista - refletiam aspirações do direito natural e do pensamento Page 235 revolucionário e libertário daquele momento histórico. Estas Cartas Políticas, no entanto, agregavam apenas um conceito político e filosófico, inexistindo, à época, a percepção jurídica daqueles documentos. A doutrina que negava seu valor jurídico predominava e assim impedia a normatividade constitucional.

As Constituições eram vistas muito mais como Cartas de intenções, formada por princípios e valores éticos, destituídas de eficácia vinculante e até mesmo de aplicabilidade, do que 'norma jurídica'.

A doutrina francesa de então, que predominou nos anos seguintes e influenciou até mesmo autores do século XX, como Esmein, Hauriou e Carré de Malberg, não raro negou valor jurídico às Declarações de Direitos e Preâmbulos, que acabavam reduzidos a um mero conjunto de princípios abstratos, sem eficácia vinculante e de aplicabilidade duvidosa e mesmo impossível (REIS, 2003, p. 12).

Essa realidade constitucional europeia fundava-se na prevalência do princípio monárquico como fonte formal da Constituição; por isso, não atribuía às normas constitucionais a natureza de direitos subjetivos. Sua compreensão jurídica de Constituição estava muito aquém daquela desenvolvida nos Estados Unidos da América, onde desde o início do século XIX (1803), a Suprema Corte, na mais célebre decisão constitucional de todos os tempos - caso Marbury v. Madison - já reconhecia a supremacia da Constituição em relação às demais leis.

Na Europa, a compreensão era outra: nem mesmo os direitos fundamentais eram tidos como direitos subjetivos. Não bastava a sua inserção na Constituição. Tais direitos representavam apenas um indicativo a ser seguido pelo legislador, destituído de obrigatoriedade. Apenas às leis atribuíam-se imperatividade e coercibilidade. As Constituições eram lidas pelas lentes da lei, somente se estas veiculassem a pretensão constitucionalmente prevista, poder-se-ia falar em direitos subjetivos. Vivia-se a era dos Códigos.

Em 1832, surge pela primeira vez uma nova concepção: o reconhecimento da normatividade de alguns princípios constitucionais. A Constituição da Bélgica, marco histórico por suas ideias inovadoras, "transformou as Declarações de Direitos - que até então eram veiculadas tradicionalmente em documentos à parte - em artigo da própria Constituição". Além disso, "permitiu aos direitos proclamados em sede constitucional engendrar direitos públicos subjetivos, acionáveis, inclusive mediante mecanismos jurisdicionais, em caso de sua violação" (REIS, 2003, p. 14). O conceito político de Constituição cede lugar à compreensão jurídica de suas normas. A Constituição alcança o status de documento jurídico.

Não obstante o importante passo dado pela Constituição Belga, a consolidação da teoria dos direitos públicos subjetivos somente ocorreu de forma efetiva no final do século XIX e início do século XX. Ou seja, também os direitos à liberdade, percorreram longo caminho até alcançarem compreensão jurídica. Page 236

O momento agora é início do século XX, período de substituição da concepção de Estado liberal pela de Estado social e de introdução, no texto constitucional, de direitos sociais, econômicos e culturais.

Marcos desse momento de transição são a Constituição Mexicana (1917) e a Constituição Alemã (Constituição de Weimar - 1919), as quais, incorporando as novas tendências solidárias, despontam como símbolo do Estado Social. No Brasil, destaque para a Constituição de 1934.

Outra crise de normatividade constitucional é vivenciada, pois os direitos sociais têm sua juridicidade questionada. Se a normatividade constitucional não alcançou de imediato nem mesmo os direitos de primeira dimensão (direitos de liberdade), que apenas exigiam do Estado posição estática (não intervencionista), tratamento diverso não seria experimentado pelos direito sociais, cujo processo de concretização estava associado à atuação positiva do Estado (dever de fazer). Neste sentido, são as considerações de Bonavides (2008, p. 564):

Mas passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos.

De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para a sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e...

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