A reafirmação da destituição do poder familiar como princípio fundamental das crianças e dos adolescentes em estado de abrigamento.

AutorMaria Carolina Valinho de Moraes
CargoBacharel em Direito pela FDV
Páginas114-155

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Introdução

A todos é assegurado o direito de ter uma família, devendo o Estado protegê-la de maneira especial, em consonância com nossa Carta Magna.

A família, antes formada apenas pelo vínculo de parentesco, ou pelo casamento, passa também a ser constituída pelas “relações afetivas”, que se traduzem nos sentimentos nascidos do convívio entre os membros da família.

A família apesar de ser um bloco único de pessoas, com os mesmos pensamentos e necessidades, é formada por indivíduos que possuem seus próprios interesses e vontades, o que no final acaba por confundir com os interesses e vontades da família como um todo.

O poder familiar deve ser exercido igualmente pelo pai e pela mãe. Existem situações, entretanto, em que este poder tampouco é exercido pelo pai ou pela mãe, ou até mesmo deixa de ser desempenhado pelos dois, o que acarreta,muitas vezes, a ruptura da instituição “família”.

Tal ruptura ocasiona problemas diversos, e aqui aponto um dos mais inquietantes: o abandono – em sua forma mais ampla - de crianças ePage 115adolescentes, que muitas vezes são levados a abrigos onde ficam até completarem 18 anos.

Estas crianças e adolescentes abrigados têm um dos seus direitos mais fundamentais violado: o direito a conviver em uma família, o que deveria ser protegido em sua maneira primordial pelo Estado.

As crianças e os adolescentes são, hoje, sujeitos de direitos, e devem ser protegidos em sua integralidade. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - aponta os direitos fundamentais e os princípios que norteiam as relações que envolvem as crianças e os adolescentes, afirmando a necessidade de proteção especial a estas pessoas. Dentre estes princípios esta o da Proteção Integral, aludido no artigo 1° do ECA, que assegura ser dever dos que compõem a Administração Pública dedicar à criança e ao adolescente um maior tempo, além de despender uma quantia de verbas públicas investindo em sua educação,sua saúde, sua alimentação e, principalmente resguardando seu direito de viver, de fazer parte de uma família.

Hoje, por falta de políticas publicas mais rígidas, as crianças e os adolescentes que se encontram abrigados, na maioria das vezes, permanecem nestas instituições até atingir a maioridade, tendo um dos seus direitos mais fundamentais violado: o da convivência familiar.

A Carta Magna atual impõe enquanto dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, o que foi confirmado pela criação do ECRIAD no ano de 1990.

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Assim, ao ser inserido em uma institucionalização de abrigo, por qualquer motivo que seja, o menor deveria permanecer nesta instituição de forma temporária, o que na maioria das vezes não ocorre, pois eles acabam crescendo em um ambiente que não oferece estrutura nem física, nem muito menos psicológica para eles se desenvolverem plenamente.

Isto não quer dizer que os abrigos hoje existentes são ruins, o problema encontra-se no desvio de sua finalidade, qual seja, abrigar temporariamente as crianças e os adolescentes que não possuem condições de conviverem com sua família biológica, por fatores criados por ela mesma.

No entanto, é preciso considerar que os menores institucionalizados têm os mesmos direitos dos outros menores que puderam conviver pacificamente com sua família biológica, sendo-lhes permitido uma inserção em família substituta, principalmente pela adoção.

Para que isso aconteça é preciso que estes menores estejam destituídos do poder familiar de seus pais, ao qual estão submetidos desde sua concepção, que se encontra como requisito essencial para iniciar qualquer processo de adoção no Brasil, sendo este o problema a ser enfrentado nesta pesquisa.

Cabe ressaltar, por fim, que a hipótese deste trabalho é que a destituição do pátrio poder se faz necessária para dar segurança tanto à criança ou ao adolescente, quanto aos adotantes, pois só assim terão certeza de que sua convivência será pacífica e que o vínculo familiar poderá ser estabelecido entre eles, a fim de se buscar uma relação afetiva muito semelhante, senão igualmente parecida, com a formada entre pais biológicos e seus filhos.

1. A reafirmação da destituição do poder familiar como direito fundamental constitucional

A destituição do poder familiar é um direito fundamental, precisando ser reafirmado como tal, visto a impossibilidade de sua violação.

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1. 1 A constitucionalização do direito civil

Pietro Perlingieri, em sua obra "Perfis do Direito Civil", aponta a constitucionalização do direito civil em vários aspectos, separando o Capítulo IX desta obra para tratar dos "Aspectos das relações familiares, pessoais e patrimoniais”. Para este autor a família não se restringe a uma relação sangüínea podendo se fundar em uma relação que nas palavras desse doutrinador seriam relações afetivas "que se traduzem em comunhão espiritual e de vida." (2002, p. 244).

Aqueles que não tenham tido a oportunidade de fazer parte de uma entidade familiar não poderão sair prejudicados, mesmo porque o art. 226, parágrafo 8° da CR, traz como responsabilidade do Estado assistir à família "na pessoa de cada um de seus membros" prezando pelo seu bem estar e segurança, não podendo deixar que pessoas fiquem sem tal assistência.

A unidade familiar não se resume em "unidade de casamento" (Perlingieri, 2002, p. 251), isto é, a origem da família não se limita ao casamento, perdurando mesmo com o fim dele. Esta unidade não faz com que a família seja vista como um bloco único, ou seja, ela "não é titular de um interesse separado e autônomo, superior àquele do pleno e livre desenvolvimento de cada pessoa" (2002, p. 245).

Isto se resume em dizer que os direitos e deveres dos componentes da família devam ser observados de acordo com os interesses e necessidades de cada um, individualmente, desde que se preserve a função serviente da família, não deixando de serem seus direitos, deveres e necessidades, observados, enxergando-a como um indivíduo único.

Acerca deste pensamento dispõe Perlingieri

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(...)a harmonização das exigências individuais, a consideração das recíprocas interferências, a comunhão ou o concurso de interesses podem, frequentemente, fazer com que mais de uma situação subjetiva pareça de natureza, antes que individual, coletiva e familiar. (2002, p. 245).

Assim, pode-se afirmar que mesmo tendo uma visão coletiva da família, ou melhor, mesmo que se preserve os interesses de cada um de seus componentes, esses interesses acabam por se confundir com os da família como instituição.

Perlingieri ainda acrescenta que a família se "traduz, em geral, na necessidade de que seja respeitado o valor da pessoa na vida interna da comunidade familiar" (2002, p. 246), o que delineia a sua função social, e a conseqüente intervenção do Estado nesta comunidade familiar.

A noção de unidade familiar mencionada acima possibilita pensar que a "comunidade familiar mostra-se (...) como um conjunto de relações jurídicas mesmo depois da sua dissolução” (2002, p. 252). Estas relações não são de fato, mas têm relevância jurídica, impondo obrigações de comportamento, ou melhor, de conduta.

Tais obrigações assumem conteúdo específico de acordo com "as circunstâncias concretas, o ambiente, a cultura, a mentalidade dos sujeitos interessados" (p. 253).

Todos, sem exceção, têm direito a ter uma família, devendo a família ser resguardada pelo Estado, conforme art. 226 da CR/88, que afirma: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

E nesse pensar coaduna Perlingieri afirmando ser a família um valor constitucionalizado, que se concretiza de maneiras diversas, mas que no final trabalha para uma única finalidade: a de educar e promover seus componentes (2002, p. 243-244). Esta finalidade deve ser cumprida pelos genitores naturaisPage 119dos filhos, mesmo não estando ligados pelo vínculo matrimonial, sendo-lhes atribuído igualdade de direitos e deveres, conforme dispõe o art. 5° inciso I da nossa Carta Magna, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Antes, como já visto no capítulo I deste trabalho, o poder familiar recebia denominação de pátrio poder, pois se resumia em "poder-sujeição”, passando a assumir um caráter democrático, passando a relação educativa ser entre pessoas e não mais entre um sujeito e um objeto (PERLINGIERI, 2002, p. 258). Este mesmo autor afirma ainda que a simples convivência dos genitores naturais com seus filhos resulta na realização prática do poder familiar.

As relações familiares têm um status personae (complexo de direitos e deveres do homem juridicamente relevantes), e por isso é dever do Estado garantir a sua existência e proteger as suas variadas formas. As relações familiares se completam e especificam-se quando existem coincidências de valores e de interesses de vida, o que se traduz como a convivência e o afeto da família, o que é definido como status familiae, e deve ser uma meta, isto é a conservação do núcleo familiar (PERLINGIERI, 2002, p...

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