Competência da justiça federal fundada em tratados internacionais

AutorOdilon Romano Neto
CargoMestrando em Direito Processual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Juiz Federal Substituto em Volta Redonda/RJ
Páginas454-483

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Introdução

A disciplina geral do Poder Judiciário Brasileiro, Poder autônomo da República Federativa do Brasil 1 e que convive de forma harmoniosa com os demais Poderes 2, tem sede na Constituição Federal, em especial no Título IV (que trata da organização dos Poderes), em seu Capítulo terceiro, especificamente voltado à organização do Poder Judiciário (arts. 92 a 126). Page 455

A estrutura organizacional do Poder Judiciário brasileiro é bastante complexa, integrando-a uma ampla gama de órgãos jurisdicionais 3 que se articulam em um sistema de Justiças (conjunto de órgãos aos quais a Constituição atribuiu genericamente o mesmo rol de competências) que se organizam em instâncias (ou graus de jurisdição), sob a égide e condução geral de um tribunal de superposição, o Supremo Tribunal Federal 4.

Dessarte, numa visão extremamente simplificadora, pode-se dizer que a Constituição Federal prevê a existência, no âmbito da União 5, de Justiças especializadas, quais sejam, a Justiça Eleitoral, a Justiça do Trabalho e a Justiça Militar, além de uma Justiça Federal comum, ao lado das quais coexistem, no âmbito de cada Estado da Federação, Justiças Estaduais comum e, eventualmente, também Militar 6.

Cada uma dessas macroestruturas ou Justiças é integrada por órgãos de primeiro grau jurisdição (juízos estaduais, federais, eleitorais, do trabalho ou militares), por órgãos de segundo grau de jurisdição (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Militares), além de Tribunais Superiores com eles diretamente articulados (Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar). Todas essas Justiças, por sua vez, vinculam-se ao tribunal de superposição máximo e guardião da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal. Page 456

Dentre as Justiças da União, destaca-se para o objeto do presente trabalho a Justiça Federal, cuja estrutura e competência são disciplinadas nos arts. 106 a 110 da Constituição Federal.

A Justiça Federal comum é integrada pelos Juízes Federais 7, em primeiro grau de jurisdição, e pelos Tribunais Regionais Federais, em segundo grau. A competência originária e recursal dos Tribunais Regionais Federais vem estabelecida no art. 108 da Constituição Federal de 1988, ao passo que a competência dos juízes federais vem disciplinada no art. 109 do texto constitucional.

A competência da Justiça Federal de primeiro grau encontra no art. 109, I, da Constituição Federal sua regra geral de definição: os juízes federais são competentes para processar e julgar causas em que a União, entidade autárquica 8 ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, salvo exceções dispostas na própria Constituição.

Em outras palavras, o critério central de determinação da competência da Justiça Federal é a condição das pessoas 9, ou mais especificamente a qualidade de um dos atores processuais (União, autarquias e empresas públicas federais). É um critério de determinação de competência ratione personae.

Não obstante, ao lado dessa regra geral de competência, outras são encontráveis no texto constitucional e que determinam a competência da Justiça Federal independentemente da presença, como parte ou interveniente na relação processual, de algum ente estatal federal. Page 457

Destaca-se, dentre essas regras, aquela prevista no inciso III do art. 109 da Constituição Federal de 1988 (Aos juízes federais compete processar e julgar as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional), caracterizável como um critério material de determinação de competência.

A doutrina nacional pouco se dedicou a essa regra de competência, o que torna necessário sua análise aprofundada sob o ponto de vista acadêmico, com o fim de estabelecer sua compreensão e orientar sua aplicação pelos operadores do direito, sobretudo pelos juízes federais e estaduais que se deparem no cotidiano forense com ações cujo pedido ou causa de pedir encontre suporte em tratado ou contrado celebrado pela União.

De outra parte, também a jurisprudência tem dedicado pouca atenção ao tema, além de verificar-se na maior parte dos julgados encontrados a ausência de um critério uniforme e seguro de aplicação da regra de competência.

O objetivo do presente trabalho, portanto, é desenvolver uma análise da regra de competência insculpida no art. 109, III, da Constituição Federal de 1988, contribuindo para sua compreensão e aplicação.

Evolução histórica da regra de competência

A Justiça Federal no Brasil foi criada após a proclamação da República, por meio do Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890 10, sendo posteriormente incorporada à Carta Constitucional de 1891, que dela tratou em seus arts. 55, 57, 58 e 60.

A estrutura imperial, por não ostentar forma federativa, mas unitária 11, por evidente não comportava a existência de uma Justiça Federal, razão pela qual a Constituição Page 458 Imperial de 1824 era absolutamente omissa sobre esse ponto e, ainda, acerca da regra de competência de que ora tratamos.

A regra de competência da Justiça Federal para apreciar causas fundadas em contrato ou tratado internacional celebrado pela União surge entre nós, portanto, no próprio Decreto nº 848/1890, consoante disposto em seu art. 15, alínea "f", verbis:

Art. 15. Compete aos juízes de secção processar e julgar:

(...)

f) as acções movidas por estrangeiros e que se fundem quer em contractos com o Governo da União, quer em convenções ou tratados da União com outras nações;

Essa regra foi posteriormente incorporada pela Constituição Republicana de 1891, que a reproduziu praticamente sem alterações em seu art. 60, alínea "f". A única modificação no texto disse respeito à denominação do órgão judicial, eis que a Constituição não se referia, como no Decreto 848/1890, a juizes de secção 12, mas a juízes ou tribunais federais. A regra de competência, em si, foi reproduzida com idêntico conteúdo.

Posteriormente, a Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal, aprovada pelo Decreto 3.084, de 05 de novembro de 1898, reproduziu, em seu art. 57, alínea "f", a competência dos juízes seccionais para processar e julgar "as acções movidas por estrangeiros e fundadas, quer em contractos com o Governo da União, quer em convenções ou tratados da União com outras nações".

A Carta Constitucional de 1934, por sua vez, manteve, em seu art. 81, alínea "f", a competência da Justiça Federal de primeiro grau, sendo de se destacar, no entanto, que diferentemente do texto constitucional e respectiva legislação infraconstitucional precedentes, não mais previu a exigência de que a ação fosse proposta por um estrangeiro:

Art. 81. Aos Juízes Federais compete processar e julgar, em primeira instância: Page 459

(...)

f) as causas movidas com fundamento em contrato ou tratado do Brasil com outras nações;

A Justiça Federal veio a ser extinta em razão do Estado Novo de Getúlio Vargas 13, na medida em que a Constituição Federal de 1937 não mais a incluiu na estrutura do Poder Judiciário 14, podendo-se afirmar, de forma geral, que a competência antes exercida pelos juízes federais de primeiro grau passou a ser exercida pelos juízes estaduais das capitais dos Estados, com recurso diretamente para o Supremo Tribunal Federal (arts. 108 e 109 da CF/1937).

Dessa forma, nenhuma menção é feita, no texto constitucional de 1937, à regra de competência fundada em tratado ou contrato celebrado pela União.

A Constituição Federal de 1946 reintroduziu a Justiça Federal, mas apenas no que se refere à criação de um tribunal de segundo grau, o Tribunal Federal de Recursos 15 16, permanecendo atribuída aos juízes estaduais a jurisdição de primeiro grau 17. Dessarte, também essa Carta Constitucional foi omissa no tratamento do tema.

O restabelecimento pleno da Justiça Federal se deu no ano de 1965, com o Ato Institucional nº 2 18, editando-se na sequência a Lei 5.010/66, que tratou da estrutura, organização e competência da Justiça Federal 19.

O Ato Institucional nº 02/65, mediante alterações na Constituição Federal de 1946, restabeleceu a Justiça Federal de primeiro grau, delimitando sua competência e, no tocante Page 460 aos tratados e contratos celebrados pela União, dispôs serem os juízes federais competentes para processar e julgar "as causas fundadas em tratado ou em contrato da União com Estado estrangeiro ou com organismo internacional".

De se observar que o Ato Institucional nº 02/65 foi o primeiro ato normativo que, ao tratar da regra de competência, fez referência a organismos internacionais. Ademais, a redação nele estabelecida revelou-se até o momento definitiva, na medida em que atos normativos posteriores, inclusive a própria Constituição Federal de 1988, apenas o reproduziram.

Com efeito, exatamente com a mesma redação se encontra a regra na Lei 5.010/66 (art. 10, III), na Constituição Federal de 1967 (art. 119, III), na Emenda Constitucional nº 01/1969 (art. 125, III) e na Constituição Federal de 1988 (art. 109, III).

Como se pode observar, a competência da Justiça Federal de primeiro grau para processar e julgar causas fundadas em tratados ou contratos celebrados pela União com Estados estrangeiros ou com organismos internacionais está presente em nosso ordenamento, sem grandes modificações, desde a criação da Justiça Federal, no ano de 1890, até a atual Constituição, registrando-se a ausência de regramento da matéria apenas nas Constituições Federais de 1937 e de 1946 (esta na redação anterior ao Ato...

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