Federalismo e repartição da competência legislativa ambiental no Brasil

AutorDaniel Braga Lourenço
CargoProfessor de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ? UFRRJ
Páginas293-307

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1. Introdução

Recentemente noticiou-se a acalorada audiência pública reali zada na Câmara Municipal de Guarulhos/SP, por ocasião da discussão do projeto de lei municipal, PL n.º 330/05, de autoria do Vereador Wagner de Freitas, que pretende suprimir o art. 26 da Lei n.º 6.033/04, diploma legal que trata do controle de zoo-noses e das políticas públicas de bem-estar animal da referida municipalidade.

A polêmica situa-se no fato de que o aludido art. 26, que se pretende cancelar, veda "o ingresso, a permanência ou o funcionamento no Município de formas de espetáculos que envolvam a utilização de animais, tais como circos, rodeios, vaquejadas, cavalhadas ou outras". Segundo consta, a audiência, que teve duração de seis horas, foi marcada por intensa troca de acusações e, infelizmente, até por agressões físicas.

A exemplo de Guarulhos, algumas cidades movimentaramse para incluir a proibição dos rodeios e atividades congêneres em suas leis municipais, tal como ocorreu em João Pessoa na Paraíba, com a edição da Lei n.º 10.683/05, cassada há bem pouco tempo pelo órgão pleno do Tribunal de Justiça daquele Estado.

Digno de nota o aumento do número de manifestações contra os rodeios em todo o país. Nesse sentido, recentemente, também houve uma passeata organizada pela Frente Abolicionista de Rodeios - FARO/RJ nas imediações da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de que se ponha "fim dos rodeios no Estado do Rio".

Embora elogiáveis do ponto de vista do comprometimento e engajamento dos ativistas em prol dos animais, tais movimentos, sob o ângulo estritamente jurídico, parecem canalizar esforço que talvez esteja mal direcionado.

Tentaremos explicar que os municípios, e também os Estados, diante das disposições constitucionais acerca da repartição da competência legislativa para o trato das questões relacionadas ao meio ambiente, e, principalmente, diante da já assentada

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jurisprudência de nossas cortes superiores, em especial a do Supremo Tribunal Federal, não podem, infelizmente, editar leis que coíbam a prática dos rodeios.

Para tanto, não entraremos no mérito da atividade dos rodeios em si mesmo considerada, cuja permissão reputamos flagrantemente inconstitucional, seja pela inafastável instrumentalização da vida animal, seja por sua manifesta crueldade e intrínseca abusividade. Centraremos atenção no aspecto procedimental relacionado à questão da competência para legislar sobre a matéria e seus desdobramentos práticos.

2. A disciplina constitucional do meio ambiente

O ponto culminante das disposições constitucionais sobre o meio ambiente encontra-se no caput art. 225 da Constituição Federal, segundo o qual "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Em linhas gerais, a maior parte da doutrina e dos julgados interpreta esse dispositivo ainda sob um ponto de vista eminentemente antropocêntrico, afirmando, a nosso juízo, de modo equivocado, que os destinatários das normas ambientais são, apenas, os seres humanos. Sob essa óptica, resta induvidoso que o homem, vestido com o manto do conceito jurídico de "pessoa", justifica a apropriação da natureza para, assim, atingir suas finalidades econômicas, sociais, culturais, etc.

Ainda no âmbito da Constituição Federal, possuímos preceito importante, constante do art. 225, § 1º, VII, que determina especificamente ao Poder Público e à coletividade o dever de "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade". Esse comando foi regulamentado pela Lei n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais),

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que tipificou os atos abusivos e cruéis como autênticos delitos. Ainda no campo da legislação infraconstitucional, temos a definição de "meio ambiente" no art. 3º da Lei n. 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) e, curiosamente, também contamos com a ultrapassada definição legal de "animais" do art. 17 do Dec. n.º 24.645/34, diploma legal que entendemos não estar revogado.

De forma geral, a legislação e, principalmente, a interpretação que dela se faz, trabalha com o conceito de "bem-estar animal", ou seja, a utilização dos animais é permitida com a imposição de determinadas condições ou salvaguardas visando-se evitar a ocorrência do paradoxal "sofrimento desnecessário", cara cterizador, em última análise, da crueldade, conceito jurídico indeterminado.

Exemplo desse tipo de norma pode ser encontrado com muita clareza na própria regulamentação dos rodeios. Como se sabe, possuímos no Brasil duas leis federais que disciplinam a nefasta atividade, quais sejam: a Lei n.º 10.519/02 que dispõe sobre "a promoção e fiscalização de defesa sanitária animal quando da realização de rodeios e dá outras providências", e também a Lei n.º 10.220/01 que "institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o a atleta profissional".

Novamente, em que pese entender que essas normas são inconstitucionais por evidente afronta ao art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, tem-se, de forma prevalente, que constitui princípio hermenêutico o fato de que as leis promulgadas gozam de presunção, relativa, de constitucionalidade, em decorrência do princípio da legalidade e do próprio Estado de Direito. Assim sendo, até que venham a ser revogadas ou tenham sua inconstitucionalidade decretada pelo Supremo Tribunal Federal, são tidas como válidas e eficazes1.

Em princípio, portanto, de acordo com a visão predominante, a atividade dos rodeios é tida como legal, desde que obedecidos os parâmetros fixados nas leis federais acima apontadas. Resta saber se outros entes federativos como Estados e Municípios

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poderiam estabelecer normas em sentido oposto ao da legislação federal, ou seja, se poderiam editar leis que restringissem ou mesmo vedassem por completo essa prática.

3. A competência legislativa em matéria ambiental

Nosso modelo federativo é bastante centralizador e isso se reflete claramente na interpretação administrativa e judicial das normas relativas à repartição de competências. Embora, em tese, a meta fosse a de se criar um sistema que evitasse a concentração de competências e a superposição legislativa, na prática verificamos que esses fenômenos são bastante comuns.

A competência legislativa em matéria ambiental está repartida, de acordo com o que dispõe o caput do art. 24 da Constituição Federal, de forma concorrente entre a União, os Estados, o Distrito Federal2. No âmbito da legislação concorrente, cabe à União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º, da CF), enquanto que os Estados e o DF podem suplementar a legislação federal (art. 24, § 2º, da CF). Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades (art. 24, § 3º, da CF), sendo que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º, da CF).

Uma primeira observação diz respeito à discussão acerca dos Municípios. Deteriam eles a prerrogativa de legislar, visto...

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