Por que flexibilizar o direito do trabalho no Brasil?

AutorFlávia de Paiva Medeiros de Oliveira
CargoMestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Páginas634-650

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1. Introdução

A discussão sobre a flexibilização das normas trabalhistas não é questão nova no Direito brasileiro e remonta à promulgação da Constituição de 1988, que atribui à convenção e ao acordo coletivo de trabalho o papel de fontes formais do Direito do Trabalho (art. 7º, XXVI e art. 8º, VI).

O debate ganhou eco novamente em 2001 quando o Poder Executivo propôs alteração ao art. 618, da CLT, por meio do qual se conferia às normas pactuadas coletivamente primazia sobre o disposto legalmente.

Disso se dessume que o cerne da questão relativa à flexibilização das normas laborais verdadeiramente se centra na determinação dos papéis que devem ser atribuídos à norma estatal e à norma coletiva no que atine à regulação das condições de trabalho.

Portanto, a delimitação do campo de atuação da negociação coletiva leva à necessidade de responder a uma das mais tormentosas perguntas do juslaboralismo atual: Por que flexibilizar o Direito do Trabalho no Brasil?

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Faz-se importante responder a esse questionamento, principalmente, no atual cenário de reformas que a sociedade brasileira está vivenciando, porque seguramente se estará em breve discutindo as bases sobre as quais se levará a cabo a reforma laboral, sendo este o momento oportuno para questionar o verdadeiro papel da negociação coletiva na regulação das condições de trabalho em um Estado Democrático de Direito, principalmente, quando se leva em consideração que a estratégia política do atual Governo, é iniciar a reforma da legislação laboral brasileira, partindo de uma reforma prévia da legislação sindical, intenção manifestada na mensagem enviada pelo Poder Executivo ao Senado, retirando da pauta de discussão o Projeto de Lei nº 5.483/2001, remetido pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso.

2. O que significa flexibilizar

Na acepção comum, flexibilizar significa a qualidade de ser flexível, elástico, ágil (FERREIRA, 1995). Sob a perspectiva sociológica, flexibilizar significa renunciar a determinados costumes e adaptarse a novas situações (CARVALHO, 2000).

O próprio Direito, como instrumento de regulação social, precisa ser flexível, adaptando-se às constantes mutações sociais, a fim de permitir que a vida em sociedade se desenvolva harmonicamente.

É essa a principal finalidade do Direito: permitir a harmonia social, através da aplicação de normas jurídicas, que se adequem à realidade social.

Assim sendo, flexibilizar o Direito do Trabalho significa criar mecanismos capazes de compatibilizar as mudanças de ordem econômica, tecnológica, política e social às relações existentes entre capital e trabalho (MARTINS, 2000).

Flexibilização não se confunde com desregulamentação, nem tampouco com desconstitucionalização, muito embora essas palavras sejam usadas freqüentemente como sinônimas.

Desregulamentar o Direito do Trabalho equivale a retroceder no tempo ao momento em que as relações entre empresários e trabalhadores eram eminentemente reguladas pela autonomia individual, ou seja, pela vontade das partes, ou, em última análise,Page 636 pela vontade do empresário, detentor dos meios de produção e parte mais forte na relação de emprego.

Em outras palavras, desregulamentar é sinônimo de regulação privada das relações laborais, que atende exclusivamente ao jogo da oferta e da procura da mão de obra, já que, em uma sociedade na qual se observa uma desregulamentação das normas trabalhistas, o Estado se abstém de intervir.

Juridicamente, também não se pode confundir flexibilizar com desconstitucionalizar, ainda que ultimamente muito se tenha falado em desconstitucionalização dos direitos do trabalhador, que significaria a eliminação dos direitos do trabalhador do âmbito constitucional.

É bem verdade que a partir da Constituição de 1988 o Direito do Trabalho passou por um fenômeno de constitucionalização, uma vez que a própria Carta Magna reconheceu o direito ao trabalho como um direito social (art. 6º), além de ter consagrado no art. 7º os direitos trabalhistas mínimos.

Esse fenômeno é de extrema importância para o juslaboralismo brasileiro, principalmente, ao reconhecer a força normativa das convenções e dos acordos coletivos (art. 7º, XXVI, CF/88) e determinar a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas, porque, quando a CLT foi aprovada na década de 40 do século passado, predominava as relações de trabalho agrícolas, que não favoreciam a organização operária e o desenvolvimento do espírito sindical, nem tampouco permitia que os sindicatos fizesem frente aos empresários (SÚSSEKIND, 1997).

Além disso, desconstitucionalizar ou desregulamentar o direito do trabalho são dois fenômenos juridicamente impossíveis diante do ordenamento jurídico brasileiro, porque a própria CF/88 consagra o valor social do trabalho como um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, juntamente com a livre iniciativa.

É nesse contexto que o fenômeno da flexibilização das normas trabalhistas ganha importância, uma vez que é ele quem permite harmonizar dois princípios fundamentais, aparentemente, antagônicos. Essa compatibilização entre o princípio do trabalho como valor social e o principio da livre iniciativa é feita através da flexibilização das normas trabalhistas, concretizada pela aplicação de outro princípio fundamental, que é o do pluralismo político,Page 637levado a cabo no âmbito laboral através da necessidade de concertação social entre empresários e trabalhadores.

Flexibilizar o Direito do Trabalho, portanto, é sinônimo de diálogo social entre as partes implicadas na relação de emprego, o que se leva a efeito através da negociação coletiva com a finalidade de compatibilizar os princípios fundamentais do trabalho como valor social e da livre iniciativa, observando-se sempre o límite intransponível relativo ao princípio da dignidade humana, também reconhecido no art. 1º, III, da CF/88 e o fato de que o trabalho, como direito social, é um fator de dignificação do ser humano.

3. O objeto da flexibilização das normas trabalhistas

Quais os direitos que podem ser objeto de flexibilização?

Essa é outra pergunta necessária quando se tenta analisar a flexibilização das normas laborais.

O art. 7º, da Constituição de 1988 enumera os direitos básicos do trabalhador na relação de emprego, surgindo dúvidas no que concerne à determinação da natureza jurídica desse dispositivo constitucional.

Não se pode duvidar de que o citado preceito estatui direitos fundamentais, já que a própria topografia constitucional demonstra essa fato ao incluir o Capítulo II, denominado dos "Direitos Sociais", no Título II, intitulado "Dos Direitos e Garantias Fundamentais".

A topografia constitucional revela que, enquanto o art. 5º reconhece os direitos do ser humano individualmente considerado, o art. 7º estatui os direitos do homem como membro de um grupo social, de uma coletividade determinada, a dos trabalhadores, cuja tutela de direitos se faz necessária para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e para a redução das desigualdades sociais.

Outro problema é o relativo à aplicação imediata da norma constitucional referida. Não se pode questionar a aplicabilidade imediata do art. 7º, já que o próprio art. 5º, § 1º prescreve que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, não estabelecendo nenhuma restrição no que atine aos direitos sociais, razão que justifica conferir aplicabilidade imediataPage 638 a todos os direitos previstos no Título I da Constituição de 1988. Por isso, os direitos previstos no art. 7º são direitos fundamentais mínimos do trabalhador.

O mencionado preceito permite a flexibilização em dois pontos fundamentais da relação laboral, isto é, no relativo à questão do sálario e da jornada de trabalho (arts. 7º, VI, XIII e XIV).

Embora se costume criticar o fato de a norma constitucional referida não ter sido pródiga na permissão de flexibilização laboral, esquece-se de que qualitativamente se permite negociar os dois pontos que mais problemas suscitam na hora de colocar frente a frente empresários e trabalhadores, porquanto se trata de dois direitos básicos do trabalhador, dos quais decorrem todos as outras garantias sociais dispensadas ao empregado.

Além disso, com relação aos demais direitos do trabalhador, previstos no art. 7º, o que não se permite é a sua redução, ou seja, a utilização da autonomia coletiva para rebaixar esses direitos. Nada impede, por exemplo, que empresários e trabalhadores, através de concessões mútuas, melhorem as normas constitucionais previstas, porque a disposição contida no artigo constitucional analisado adquire o caráter de norma de direito mínimo necessário, o que se dessume da própria expressão "além de outros que visem a melhoria de sua condição social", contida na parte final do art. 7º, caput, da CF/88.

Um exemplo disso é o atual § 2º,...

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