Flores do bom jardim - Um recorte sobre desigualdade de gênero a partir de histórias de vida

AutorLília Maia de Morais Sales; Mariana Almeida de Sousa
Páginas175-187

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Introdução

A idéia de escrever esse trabalho surgiu de um diálogo que eu e Mariana tivemos quando ela veio me visitar durante um pós-operatório. 1 2Conversávamos sobre a experiência de participar de um projeto do Ministério da Justiça, executado pela Universidade de Fortaleza, intitulado Mulheres da Paz. Eu como coordenadora do projeto, ela como professora do curso. O projeto dedica-se a selecionar 300 mulheres do bairro Bom Jardim (o mais violento de Fortaleza-Ce) e capacitá-las com um curso de 400ha em direitos humanos e mediação de conflitos para que elas possam atuar junto aos adolescentes em situação de risco.

Como boas amigas que nos tornamos ao longo desses anos (fui professora desde a graduação), dedicamos tempo a diálogos sobre vários temas; nesse dia, discutíamos gênero e o projeto Mulheres da Paz.

Ela falava com tanto entusiasmo das "minhas" alunas, das "minhas" mulheres da paz, que eu, enfim, exclamei: "Você tem que passar esse sentimento para um texto. Vamos fazer isso. Seremos (então eu parei de falar por um momento e lembrei da noite anterior, em que pela 'enésima' vez tinha lido para minha filha a história do Pinóquio) como o Grilo Falante. Contaremos a história e participaremos dela". Assim surgiu a idéia do "diário".

Sabíamos que estávamos quebrando algumas regras tradicionais que tanto temos seguido ao longo de estudos acadêmicos, mas desta vez, sentimos vontade de expressar em um texto, da melhor forma, da maneira mais intensa possível, o "sentimento", a dor vivida e sentida da desigualdade de gênero por mulheres, nesse caso, pelas "mulheres da paz". Seguimos então o caminho metodológico adotado por Patricia Williams 3.

Pensamos uma metodologia que permitisse otimizar a nossa proposta: "passar vida para o papel". Desse modo, realizamos um levantamento bibliográfico para compor o marco teórico. Estudamos, ainda, documentos com pesquisas sobre violência de gênero e, em especial, redações que solicitamos que fossem escritas pelas mulheres da paz com o relato de casos reais vividos por elas. O título das redações era: "Sofri por ser mulher".

Também realizamos pesquisas de campo, com entrevistas em forma de diálogos diários com essas mulheres. Assim, fomos contando essas histórias de vida. Relatamos cinco histórias reais que nos comoveram e que refletem diferentes tipos de violência resultantes da desigualdade de gênero, além de refletirem muita dor e superação.

A proposta é que o leitor sinta pelo menos um pouco do que sentimos ao conversar com cada mulher. O impacto em nossas vidas foi muito significativo e determinante para orientar nossos estudos sobre desigualdade de gênero daqui para frente.

Atribuímos nomes fictícios às mulheres, preservando, assim, suas identidades conforme exigem as regras dos comitês de ética. Os nomes escolhidos para elas foram nomes de flores, fazendo referência às flores do "Bom Jardim" em que vivem.

O Projeto Mulheres da Paz, como ressaltamos, tem como objetivo incentivar mulheres, a partir de um programa de capacitação, a fortalecer, se já existentes, ou construir redes de prevenção de violências que envolvem jovens expostos a situações de risco.

Honestamente, pensávamos que teríamos apenas de lecionar princípios básicos de Direitos Humanos, Direito Público, Direito de Família, Direito da Mulher, Mediação de Conflitos, dentre outras matérias relevantes. Nunca imaginamos, porém, que criaríamos um vínculo tão forte com essas mulheres. Antes alunas, hoje amigas, a experiência vivida com essas mulheres é um tesouro que, com certeza, guardaremos sempre em nossas melhores lembranças. Page 176

Desenvolvimento: diário
1. Acácia

Fortaleza, 15 de Outubro de 2009.

Mais um dia daqueles! Acordo cedinho, cerca de cinco horas da manhã, vou para a academia, daquelas que têm várias agora aqui na cidade, "só para mulheres", retorno para casa, dirijo em direção ao Bom Jardim, que é onde eu me encontro e me reconheço como ser humano. Lugar onde, diariamente, descubro e redescubro quem eu sou. É na sala de aula, local onde eu apresento a essas mulheres uma outra realidade, realidade sobre seus direitos que elas até bem pouco tempo desconheciam, que eu tento ensinar e aprender a valorizar o ser humano. São essas mulheres, as Mulheres da Paz, como são conhecidas por todos, as verdadeiras mestras, professoras da vida, não eu, que tenho como bagagem apenas aquilo que li e estudei em calhamaços de bibliotecas. As "minhas" mulheres conhecem e convivem com a concretização de muito do que aprendi quando li Woolf 4 em Um teto todo seu, onde ela mostra com muita propriedade o desejo e a ânsia de mulheres de possuírem autonomia e liberdade, de poderem viver sem o consentimento dos homens. Essas mulheres, mais do que liberdade, lutam, dia após dia, por paz, pela liberdade de sair de suas casas sem estarem rodeadas pela ameaça, pela violência, pelo medo.

Pois é, estava eu conversando com "minhas" alunas sobre Direito da Mulher, quando uma delas, exemplo de pontualidade, chegou em sala, faltando pouco tempo para a aula acabar e trazendo consigo, como era de costume, uma bolsa de pano. Dessa vez, no entanto, trazia também um olhar apreensivo e perturbado. Esse último "detalhe" logo me chamou a atenção e, aproveitando que todas estavam se preparando para a apresentação de uma dinâmica, perguntei se estava tudo bem. Perguntar não me deixou menos preocupada, pois uma única e tímida lágrima rolou em sua face. E ela me disse que precisava conversar.

Estávamos em um corredor, no qual alunos da escola CAIC andavam apressados, gargalhando e fazendo muito barulho. Afastamo-nos um pouco daquela confusão e eu comecei, perguntando como poderia ajudá-la. Acácia disse que não sabia o que fazer, pois sua filha de doze anos, a quem amava, havia se envolvido com homem mais velho, trinta e seis anos, homem esse que frequentava sua casa constantemente e que havia crescido em sua rua. Sua filha, uma menina-moça, que ainda brincava com bonecas, manteve, por duas vezes, relações sexuais com esse homem, já pai, já esposo, já experiente e que, inescrupulosamente, iludiu uma menina cheia de sonhos.

Como lidar com um caso desses? Estupro presumido, artigo 216 do Código Penal. Pena: dois a quatro anos. Foi o que aprendi na faculdade. Muito simples. Mas a realidade não é nada ordinária. Ou, talvez, "ordinária" demais. É pesada, difícil de enfrentar e, muitas vezes, como nesta situação em que me deparei, suja e inescrupulosa. Que realidade cruel é essa que eu demorei tanto tempo para conhecer, assim, tão de perto? E um caso que, como advogada, me pareceria tão comum, como professora dessas "minhas" mulheres, me deixou sem chão. Tive de conter as lágrimas e demonstrar força para aquela mulher que necessitava de um porto seguro, nem que fosse por um instante.

A impunidade não poderia reinar e deveríamos zelar pela incolumidade física e mental de sua filha. Todos os dias, mulheres são submetidas a condições de humilhação e são subjugadas por uma idéia de força viril por parte de homens que iludem, mentem, usurpam e estupram. Essa história me fez pensar sobre como as mulheres lutam pelos seus filhos ou por aqueles por quem são responsáveis direta ou indiretamente. Refleti sobre o que eu havia estudado sobre o projeto "Mulheres da Paz". Ao conhecer o projeto, questionei-me: 'por que mulheres'? Havia um relato de membros do Ministério da Justiça que a maior parte dos projetos e ações que envolvem jovens em conflito com a lei são propostos, questionados e avaliados por mulheres. O maior número de reclamações na ouvidoria do Ministério da Justiça sobre qualquer projeto era feito por mulheres. Daí o protagonismo em projetos que exigem o "cuidar". Page 177

Realmente, parece-me que E. Fromm estava adivinhando o que aconteceria no futuro quando escreveu que "as tendências manifestadas na sociedade moderna evoluem em direção a uma sociedade matriarcal, onde a lei da mãe substituirá a lei do pai. 5" Se isso vai acontecer ou não, ainda não tenho respostas. Sinto que o caminho a se buscar é o do equilíbrio, da igualdade e da solidariedade. As mulheres têm tido um papel prioritário nas lutas em prol da paz, dos movimentos que protegem a criança e o adolescente e de atividades em prol da igualdade de gênero. Elas vão à luta. As protagonistas são mulheres comuns. Não sei se posso chamá-las de "comuns". São mulheres que fazem de atos diários, grandes conquistas.

Lutam assim, como Acácia, que, apesar de todas as provações, continua acordando bem cedo, adiantando os afazeres domésticos e os cuidados com seu marido e com a sua filha de doze anos, que continua brincando de boneca. Agora ela luta para resolver, da melhor forma possível, a situação em que sua filha se encontra. O mais interessante é que EU agora faço parte dessa luta. Olho então para Acácia, depois de falar comigo, a vejo andar alguns quarteirões e "pegar" o ônibus: mais um dia de faxina na casa da Dona Luciene. Mais um dia, mais uma batalha, mais um vitória. Um dia de cada vez.

2. Violeta

Fortaleza, 19 de Outubro de 2009.

"A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades. Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural". Foi o que afirmou Aristóteles. "A mulher é um homem incompleto, um ser ocasional", escreveu Santo Tomás de Aquino. Foram de frases como estas que lembrei quando ouvi a história de Violeta.

Violeta sofreu preconceito por ser mulher desde seu nascimento. Sua mãe encontrava dificuldades para engravidar e seu pai, por outro lado, sempre sonhava em ter um filho. Filho! Sexo masculino! Após alguns anos de tentativa, veio a tão sonhada gravidez. Seus pais (de Violeta) não se continham de tanta alegria. Aos cinco meses foi feito o primeiro ultra-som. O pai foi junto. E quando o médico disse que era uma menina, seu pai não acreditou de...

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