Forma juridica, escravidao e ferrovias no Brasil do seculo XIX/Legal form, slavery and railways in Brazil of the XIX century.

AutorAugusto, Walter Marquezan

1) Introducao

No Brasil do seculo XIX, a agricultura para exportacao, com base na grande propriedade e no trabalho escravo, constituia o setor mais rico e importante do pais. Dois seculos depois, apos periodos de crescimento economico e tentativas de industrializacao, ainda podemos reconhecer as feicoes das antigas estruturas produtivas. A producao em latifundios para a exportacao segue sendo o principal eixo dinamico da economia brasileira--acompanhada da exportacao de minerios. Hoje, no entanto, a escravidao parece ser coisa do passado.

Nos apressariamos se fossemos peremptorios com essa conclusao. Sabe-se que embora a lei atual proiba a escravidao, ela segue presente entre nos, seja nas manifestacoes diretas de trabalho escravo (ou analogo a condicao de escravo) ou nos diversos resquicios de seculos de escravatura. Para entender essa sombra que nos acompanha, convem que voltemos o olhar ao passado.

Varios foram os trabalhos que buscaram descrever a escravidao no periodo colonial e no Imperio. Mas, a interrogacao que une os temas do presente artigo e move a pesquisa e: o que aconteceu quando o trabalho escravo foi proibido num periodo em que a escravidao ainda era permitida? Mais especificamente, direcionaremos a nossa questao na tentativa de compreender juridicamente a ocorrencia da escravidao na construcao das ferrovias brasileiras no seculo XIX, onde era expressamente proibida por lei.

Assim, em um primeiro momento sera abordada a conjuntura tematica do Estado (o Imperio e sua economia), a Escravidao e as Ferrovias, identificando a insercao do problema de pesquisa. Apos, serao exploradas algumas das distincoes juridicas utilizadas acerca dos status das pessoas escravizadas e engajadas na construcao das ferrovias. Por fim, concentraremos a nossa analise na compreensao juridica da indistincao fatica que as condicoes de trabalho impunham aos trabalhadores. Em conclusao, e feita uma reflexao sobre a forma juridica e suas modulacoes a partir da retomada dos pontos analisados.

O trabalho debruca-se, portanto, na investigacao da forma juridica que permitiu essa ocorrencia, e que fez com que as formas tradicionais de manejo e organizacao do trabalho identificassem as novas experiencias laborais a escravidao.

2) Imperio, Escravidao e Ferrovias.

"Com efeito, a acao do Estado imperial e republicano e fundamental na reproducao das condicoes de producao e constitui assim o elo logico da continuidade dos sistemas sociais distintos que marcam a historia brasileira." (1) A escravidao no Brasil do seculo XIX esta intrinsecamente relacionada com a consolidacao do capitalismo numa chave de economia-mundo. (2) Neste sentido, nao e mero acaso que em meados do seculo XIX o Brasil tenha intensificado a sua atividade produtiva e comercial especialmente com a ascensao e auge do cafe, tornando-se o lider na producao mundial do genero. (3)

Para que isso acontecesse, foi indispensavel a politica adotada no Imperio e as condicoes institucionais que ali estavam sendo criadas. O Estado em formacao atuava em duas frentes, ou, na metafora de Ilmar de Mattos, em dois lados de uma mesma moeda: de um lado, no plano internacional, negociava o seu alinhamento com os interesses das "Nacoes Civilizadas", de outro, constituia a sua unidade em uma intima e mutua relacao de construcao com uma "classe senhorial". (4) Assim, enquanto a organizacao dos fatores de producao centrava-se na questao da terra e da mao de obra, (5) o recem-formado Estado Imperial consolidava sua estrutura administrativa e legislacao. A escravidao, contudo, estava no centro do debate do Imperio--e marcou um modo peculiar de relacao com o Direito e com a lei. (6)

Esse modo peculiar se faz sentir pela tensao que se forja entre uma certa "adocao" das ideias liberais e a dinamica que a economia mundial possibilitou as estruturas produtivas. Isso porque, na medida em que o cenario economico proporcionou condicoes de ampliacao da demanda e do credito para o incremento da producao, o trafico de escravos e a exploracao da mao de obra tiveram de acompanhar a nova intensidade. E essa diferenca qualitativa que marca a compreensao de uma segunda escravidao, nos termos de Dale Tomich. (7) Essa orientacao revigora a tese de Eric Williams, afirmando nao so que o capitalismo europeu conviveu com a escravidao nas americas, como foi o pressuposto decisivo nos processos globais de acumulacao e divisao do trabalho.

Nao e fortuito, portanto, que a expansao da estatalidade se de, tambem, na criacao de um dominio (macro) economico nacional. Essa e a mocao das reformas legislativas da metade do seculo XIX--a saber, o Codigo Comercial (Lei n. 556 de 25 de Junho de 1850), a Lei Eusebio de Queiros (Lei n. 581 de 4 de Setembro de 1850) e a Lei de Terras (Lei n. 601 de 18 de Setembro de 1850): sinaliza-se o fim da escravidao e restringe-se o acesso a terra. (8) Podemos, entao, dizer que essa conjuncao e responsavel pela estruturacao de uma ordem economica liberal no pais. (9)

Mas, como se pode ver, o movimento de contradicoes (algumas meramente aparentes) nesse quadro de totalidade exige cuidado, e a insercao das ferrovias no ambito nacional esta exatamente nessa encruzilhada--Estado, Economia e Escravidao.

De um lado, os investimentos em novas tecnicas eram considerados muito arriscados e as grandes extensoes de terra ainda nao aproveitadas estimulavam a continuidade dos "metodos tradicionais" (dentre os quais a propria escravidao). Por outro, os proprietarios pediam apoio governamental a atividade produtiva na forma de "melhoramentos materiais", ou seja, com obras de infraestrutura--nisso incluidos portos, servicos urbanos, estradas, ferrovias e imigracao estrangeira. A organizacao do trabalho, por sua vez, estava ligada diretamente a extincao do trafico de escravos e, ao cabo, com o fim da escravidao. Desse modo, a preocupacao generalizada com a abolicao gradual era um meio de evitar a "emancipacao" repentina e com isso uma suposta desorganizacao na estrutura produtiva, que estava em pleno crescimento. Atentos as inovacoes tecnicas mundiais, alguns produtores viram nas ferrovias uma forma de reduzir os custos dos transportes (a epoca feito por mulas) e liberar a mao de obra envolvida nessa atividade, alem de permitir a expansao da fronteira agricola. (10) Ou seja, inferencias precipitadas sobre o carater antiescravista das ferrovias brasileiras nao correspondem as circunstancias historicas.

Em meados do seculo XIX, o Estado Imperial engaja-se na tarefa de possibilitar a construcao de caminhos de ferro a partir de leis que definem privilegios e garantias. Apos algumas experiencias de pouco exito, (11) e emitido o Decreto no. 641 de 26 de junho de 1852, que autoriza o governo conceder a construcao de caminho de ferro que ligasse Rio de Janeiro, Sao Paulo e Minas Gerais--regioes de expansao da producao cafeeira (Vale do Paraiba). Alem das disposicoes que asseguravam ao concessionario beneficios--como o privilegio de zona e a garantia de juros--, o referido diploma proibia a Companhia de possuir escravos e obrigava a utilizacao de mao de obra livre (nacional ou estrangeira).

A partir desse decreto iniciou-se um periodo de concessoes e obras. As linhas eram inauguradas e as obras continuavam (por decadas) a fim de ampliar os trechos. Nas primeiras duas decadas (1850-1870) foram construidos 744km de estradas em todo pais. Ja entre 1871 a 1890 esse numero subiu para 9228 km, sendo grande parte na provincia de Sao Paulo (cerca de 24,3% do total da malha do pais em 1890). (12) A primeira ferrovia inaugurada foi a Estrada de Ferro Maua em 1854, no Rio de Janeiro--que contou com um trajeto curto e veio a ter pouca relevancia economica. Ja em 1858 foi inaugurada em Pernambuco a segunda ferrovia no Brasil, a Recife and Sao Francisco Railway Company. No mesmo ano de 1858 comecariam as construcoes da Estrada de Ferro D. Pedro II, que ligou o Rio de Janeiro a regiao do Vale do Paraiba em 1864. Em 1860, teve inicio a construcao da estrada de ferro que ligaria o porto de Santos a Jundiai, a chamada Sao Paulo Railway Company, vindo a ser inaugurada em 1867.

E preciso atentar que a construcao das ferrovias ocorreu de maneira distinta nas diferentes regioes do pais, refletindo a dinamica economica regional de cada epoca. A tentativa de modernizacao e a dificuldade da competicao internacional da producao acucareira do Nordeste contrastava com a dimensao de prosperidade do cafe no Sudeste. Isso reverberou no modo como cada regiao reagiu ao fim do trafico internacional e a legislacao de abolicao gradual, especialmente no que diz respeito ao recurso ao trafico interprovincial--que passou a se concentrar em direcao ao Sudeste. (13) A partir de 1870, fatores como crescimento da producao e exportacao de cafe, crescimento populacional e expansao ferroviaria tornaram-se elementos indissociaveis, (14) formando uma espiral crescente: otimizacao do frete; intensificacao da producao; intensificacao da mao de obra escrava. (15)

Mas, diante desse quadro, o que parte da historiografia demonstra e que as ferrovias, especialmente nas primeiras decadas de suas construcoes, se valeram (direta e indiretamente) da mao de obra escrava ou impuseram condicoes de trabalho tao duras que tornavam trabalhadores livres indiferentes de escravos (e vice-versa). E dizer, as ferrovias nao apenas contribuiram para uma economia escravista, mas os empreendimentos apoiaram-se diretamente na escravidao.

Ao inves de enxergar nessa constatacao um mero descumprimento da lei (Decreto n. 641 de 1852, art. 1, [seccion]9), o presente trabalho pretende dialogar com alguns desses autores a fim de atribuir outros contornos juridicos aquilo que e visto como uma situacao ao arrepio do Direito. A nosso ver, existe uma lacuna de conhecimento em torno dos possiveis entendimentos juridicos sobre esses acontecimentos.

Assim, considerando a construcao das ferrovias brasileiras no seculo XIX, eis o problema que move a presente investigacao: como compreender...

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