A fronteira entre patrimônio cultural e direito animal: o caso do ofício dos carroceiros

AutorAnelisa Cardoso Ribeiro, Giselle Ribeiro de Oliveira e Karina Cardoso Ribeiro
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG/Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG/Licenciada em História
Páginas275-290
5° Congresso Mineiro De Direito Ambiental: Crise do Estad o
Democrático de Direito e Retrocessos Ambientais | 2021 | Volume 1
275
A FRONTEIRA ENTRE PATRIMÔNIO CULTURAL E DIREITO
ANIMAL: O CASO DO OFÍCIO DOS CARROCEIROS
THE THRESHOLD BETWEEN CULTURAL HERITAGE AND ANIMAL RIGHTS: THE
CASE OF HORSE-DRAWN CARRIAGE DRIVERS
Anelisa Cardoso Ribeiro709
Giselle Ribeiro de Oliveira710
Karina Cardoso Ribeiro711
RESUMO: Atualmente, existe a pretensão de reconhecimento, salvaguarda e
valorização do ofício de carroceiro e carroceira e da carroça como tecnologia de
trabalho do carroceiro em Belo Horizonte, ambos como patrimônio imaterial
relacionado à cultura da cidade. O assunto é polêmico pois bate de frente com a
pretensão de outros grupos, de cunho biocêntrico, no sentido de que sejam
concretizados direitos dos animais. O presente artigo aborda esse conflito - que ficou
patente com a sanção da Lei Municipal belorizontina 11.285/2021 -, trazendo em
retrospectiva as nuances referentes à proteção do patrimônio imaterial. O trabalho expõe
a pretensão de patrimonialização da laboração dos carroceiros, e, por outro lado, um
histórico sobre a evolução da ética social e da normatividade no sentido da superação do
paradigma antropocêntrico, no qual os animais são tratados como coisas a serviço do
homem. Após esse levantamento, conclui-se que o conhecimento humano progrediu no
sentido de reconhecer que os animais têm consciência e que, portanto, merecem ser
tratados com dignidade. A evolução da ética humana e a normatização que dela derivou
impedem a perpetuação promovida pela salvaguarda de tradições que importam em
maus-tratos contra os animais, como é a atividade profissional dos carroceiros.
Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial; direitos dos animais; animais de tração;
ofício carroceiro; evolução cultural.
ABSTRACT: There currently exists a claim to the recognition, safeguarding and
appreciation of carriage driving and the use of the horse-drawn carriage for work
purposes, as part of the intangible cultural heritage of the city of Belo Horizonte. It is
controversial as it comes into conflict with the goals of other, biocentric groups that
advocate for the consolidation of animal rights. The following article addresses this
conflict, one that has become increasingly evident with the approval of the Municipal
709 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Especialista em Direito Ambiental e
Sustentabilidade pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Promotora de Justiça no Ministério Público
do Estado de Minas Gerais. E-mail: anelisacr@mpmg.mp.br
710 Bacharel em Direito pela Faculd ade de Direito da UFMG. Especialista em: Direito, Imp acto e
Recuperação Ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto; Direito Ambiental e Sustentabilidade
pela Escola Superior Dom Helder Câmara; Direito Sanitário pela Escola de Saú de Pública do Estado de
Minas Gerais. Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. E-mail:
giselleribeiro@mpmg.mp.br
711 Licenciada em História. Especialista em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Mestre em História e Civilizações pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
/Paris. E-mail: karinacardrib@gmail.com
5° Congresso Mineiro De Direito Ambiental: Crise do Estad o
Democrático de Direito e Retrocessos Ambientais | 2021 | Volume 1
276
Law 11.285/2021, prompting reflections on the protection of intangible cultural
heritage. The article considers the claim to recognition of the work of carriage drivers as
cultural heritage and also presents a historical survey of the evolution of social ethics
and norms related to the transformation of the anthropocentric paradigm, which
considers animals to be ‘things’ at the service of people. It concludes that human
knowledge has progressed towards the recognition of animals have as sentient beings
and, as such, deserve to be treated with dignity. The evolution of human ethics and its
normative structure prevents the perpetuation which is advocated by the safeguarding of
traditions based on the mistreatment of animals, as is the case of horse-drawn carriage
drivers.
Keywords: intangible cultural heritage; animal rights; draft animals; profession of
carter; cultural evolution.
1. Introdução
Tradição nacional, o vinho faz parte do cotidiano de grande parte dos franceses,
tanto que era comum no princípio do século XX as famílias enviarem essa bebida
alcoólica na lancheira das crianças para acompanhar suas refeições na cantina das
escolas712. Em outro giro, a escravidão de animais humanos foi praticada oficialmente
por milênios, fazendo parte da história das mais diversas nações, e persistiu até a década
de 1980 em determinado país da África713. O marfim in natura é matéria prima de
manufatura de objetos de luxo na Europa desde o século XV e também de objetos
devocionais esculpidos na Índia, na China, nas Filipinas e nas Américas714. A ocupação
e desenvolvimento inicial do estado de Minas Gerais foram diretamente relacionadas à
exploração mineral de ouro que, até o século XVII, ocorria na forma de garimpos em
aluviões, e que a partir do século XX passou a contar com a utilização de mercúrio.
Essas narrativas podem parecer aleatórias, mas todos são exemplos de condutas
que, em algum momento, eram socialmente aceitas e faziam parte da cultura de
diferentes países em diferentes momentos da história. Atualmente existem também
outros tantos modos de viver e fazer, praticados ou tolerados pela sociedade, que trazem
desconforto a outros grupos sociais e prejuízos ao meio ambiente, e por isso tem sido
repensados. É o caso do uso de animais de tração em atividades profissionais: entidades
protetoras de animais alegam maus-tratos e escravização no trabalho de carga; já
representantes dos carroceiros dizem se tratar de casos isolados e que o trabalho com
carroças é uma tradição cultural e familiar, que passa por gerações.
O assunto é polêmico pois se, por um lado, envolve o modo de vida e atividade
econômica de um grupo socialmente fragilizado e hipossuficiente, por outro traz à tona
a questão do progresso na proteção animal no direito nacional e internacional, que
certamente condiciona as condutas humanas.
712 WEHRUNG, Mathieu. Le vin n’a été interdit dans les cantines scolaires qu’en 1981. In: Le saviez
vous. 7 de novembro de 2017. Disponível em: https://soifdailleurs.com/blog/cantine-b53.html. Acesso
em 28 de abr. 2021.
713 MARTINS, Geiza. Qual foi o último país a abolir a escrav idão? Disponível em:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-foi-o-ultimo-pais-a-ab olir-a-escravidao/. Acesso em 28 de
abr. 2021.
714 SANTOS, Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (Organização). O
comércio de marfim no mundo Atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX). Belo Horizonte:
Clio Gestão Cultural e Editora, 2018.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT